Entrevista | 21-02-2024 15:00

O político de Tomar que se fez homem a trabalhar como electricista e atrás de um balcão

O político de Tomar que se fez homem a trabalhar como electricista e atrás de um balcão
Hugo Cristóvão sucedeu a Anabela Freitas em Outubro de 2023 ficando à frente dos destinos do município de Tomar

Hugo Cristóvão assumiu a presidência da Câmara de Tomar em Outubro de 2023, sucedendo a Anabela Freitas, de quem foi vice-presidente nos últimos 10 anos. Em entrevista a O MIRANTE fala, entre outros assuntos, do seu percurso de vida e de como as suas origens são importantes para desempenhar o cargo que ocupa actualmente.

Hugo Cristóvão, 46 anos, passou de vice a presidente da Câmara Municipal de Tomar em Outubro de 2023, embora confesse que a única coisa que mudou no seu dia-a-dia foi o título do cargo que desempenha. Professor de vocação é autarca há quase duas décadas, sempre eleito pelo Partido Socialista, e tem em Mário Soares a sua grande referência e inspiração. Foi músico durante 15 anos na Sociedade Filarmónica Gualdim de Pais, onde também foi dirigente e funcionário. Exercer cidadania activa tem sido sempre uma das suas práticas desde os tempos em que ainda vivia na freguesia de Casais, de onde os pais são naturais e ainda vivem. Filho de um electricista e de uma empregada doméstica, fez-se homem a ajudar o pai no trabalho e, mais tarde, como empregado de mesa numa marisqueira em Tomar, passado para o qual olha com orgulho. “Se não fossem esses anos de trabalho e aprendizagem não seria o que sou hoje”, afirma.
Nesta conversa com O MIRANTE, Hugo Cristóvão demonstra ser uma pessoa de afectos e que gosta de conversar. A entrevista começa com um atraso de 20 minutos porque pelo caminho o presidente parou uma mão cheia de vezes para cumprimentar munícipes. A grande bandeira do município, revela, vai continuar a ser ligar a cidade ao universo templário, assim como a requalificação do património, o investimento na habitação, na educação, entre outros. Hugo Cristóvão fala nesta entrevista sobre a poluição no rio Nabão, o trabalho das entidades do Estado, as barracas do Flecheiro e as relações mais azedas com algumas chefias do município que lidera.

Que importância teve a família na sua ligação à política?
O meu pai participou em listas da Junta de Freguesia de Casais, onde os meus pais ainda residem e onde eu residi até há duas décadas, antes de ter comprado casa na cidade de Tomar. Não posso dizer que a minha família teve muita influência no meu percurso político. Tinha alguns hábitos em criança/adolescente, como por exemplo assistir aos debates na Assembleia da República. Aos 18 anos, por iniciativa própria, militei-me no Partido Socialista, onde reconheço a minha base de valores, e também muito inspirado por uma figura que continua a ser uma das minhas referências, o Mário Soares. Senti sempre muita necessidade de exercer cidadania e de estar ligado ao mundo associativo.
As associações ajudam a formar o carácter de um jovem?
Claro. Os 15 anos que passei como músico na Sociedade Filarmónica Gualdim Pais foram essenciais para aquilo que sou hoje. Para além de músico filarmónico fui dirigente, cheguei a ser funcionário no bar, entre outras tarefas, como organizar acampamentos para os miúdos. Entretanto licenciei-me e fui professor de artes visuais alguns anos. Foi nessa altura que me convidaram para participar numa lista. Não comecei por pertencer à JS. Costumo dizer que fui do PS à JS e não ao contrário.
Tem orgulho nas suas origens?
As minhas origens fizeram de mim o que sou hoje. O meu primeiro salário foi numa marisqueira em Tomar, mas já trazia alguns anos de trabalho como electricista e outros biscates. O meu pai era electricista e a minha mãe empregada doméstica. Sempre tive de trabalhar para ajudar em casa. Há por aí muita vivenda com a electricidade instalada por mim. Depois trabalhei na restauração, mas também ia ganhando uns trocos na construção civil. Aos 21 anos, já licenciado, comecei a dar aulas. Pelo meio guardo a felicidade de outras experiências. Já fui sindicalista a tempo inteiro, delegado do IPDJ. Fui o último delegado do IPJ em Santarém.
Que contributo teve essa experiência para a pessoa que é?
Digo muitas vezes que a marisqueira me pagou o curso. Não há nada melhor do que sentirmos que o nosso esforço compensa e que conquistamos as coisas com trabalho. A marisqueira ensinou-me a lidar com as pessoas. Trabalhar atrás de um balcão é uma escola de vida porque lidamos com pessoas dos vários estratos sociais. A experiência do mundo do associativismo também foi muito importante porque é preciso estar sempre a tentar encontrar soluções para os problemas. Costumo dizer que “o associativismo está sempre em crise”. O dinheiro nunca chega para nada. Os meios são sempre poucos. Há que encontrar soluções.
E no futuro vê-se novamente como professor?
Sem problema nenhum. Vou voltar a dar aulas seguramente. É a minha profissão com muito orgulho. Escolhi ser professor.
Está no executivo municipal de Tomar há mais de 10 anos. Alguma vez teve que pedir desculpas à família por não estar presente?
Não tenho que pedir desculpas porque a família não o exige. A minha companheira de vida, a Patrícia, já me conheceu neste registo, digamos assim. É evidente que é uma exigência muito grande. São sete dias por semana. Nos últimos dez anos foram muito poucos os fins-de-semana que tive disponíveis. A exigência agora é muito maior porque fui pai recentemente.
Está satisfeito com as suas escolhas?
Digo que sim sem pestanejar. Estou aqui por opção e porque os tomarenses assim o têm permitido. É uma missão que estou a cumprir porque quero e gosto. Estou como presidente da câmara, mas há um dia em que isto vai acabar e é preciso saber que no dia a seguir se entra quase num vazio. Conheço um ex-presidente de câmara que ficou durante muito tempo triste porque o telefone deixou de tocar.

Habitação é o grande problema

Quais são os grandes desafios para um autarca em Tomar?
Dois deles são a fixação das pessoas e de empresas. Garantir o desenvolvimento económico. Enquanto autarca tenho que criar condições para melhorar a qualidade de vida das pessoas. O concelho de Tomar tem uma óptima qualidade de vida, tem boas ofertas na educação, na cultura, no desporto, e portanto o grande desafio é continuar a proporcionar isto às pessoas. No entanto, há sempre algumas ervas que não foram cortadas ou um buraco que ainda não foi tapado.
Tomar não é só turismo?
É evidente que o turismo é o grande potencial do nosso concelho, mas também de toda a nossa região. Quando iniciámos a governação em 2013 achámos que estava quase tudo por fazer nesta área, o que era incompreensível porque não há nada mais óbvio do que Tomar desenvolver o sector de turismo.
Por causa da marca templária?
A marca templária não estava explorada. O slogan “Tomar Cidade Templária” já existia. Hoje quando se fala dos templários em Portugal não há nenhuma dúvida de que se fala de Tomar. E realmente os templários são uma marca vendável em qualquer parte do mundo. É uma das poucas marcas que o país tem para oferecer. Na nossa região temos duas, os Templários e Fátima.
Tomar é uma cidade cara para viver?
É verdade que é das mais caras. A habitação é o nosso grande problema, mas não se resolve de um dia para o outro. Não podemos chegar ali à loja e comprar habitações. É preciso fazer projectos e encontrar financiamentos. Neste momento está a avançar o projecto com o protocolo que fizemos para construção de 32 fogos. Vamos assinar mais 12 fogos entretanto. Lançámos uma oferta pública de aquisição para 60 fogos. Estamos a falar de quase uma centena de fogos.

O que é preciso para Tomar ser uma referência no sector empresarial?
Tomar ficou afastado durante muitos anos das vias principais. A A1 foi feita em Fátima e depois mais tarde a A23 também não passou aqui. Tomar ficou afastado. As acessibilidades estão restabelecidas com a A13 e com o IC9. Temos apostado na área das tecnologias com a vinda de empresas que no seu todo já empregam mais de 400 trabalhadores.
A destruição das barracas na zona do Flecheiro foi uma das grandes medidas do executivo?
Liderei o processo desde início nas suas várias vertentes. Temos tido uma postura de fazer o que é óbvio. Esta era talvez a mais óbvia de todas. A cidade tinha dentro de si um acampamento com duas centenas e meia de pessoas. Para além da questão social tinha toda a questão ambiental, paisagística, de imagem da cidade e do não aproveitamento de toda aquela zona.
O realojamento e integração dessas pessoas está garantido?
A integração obviamente é um trabalho que demora. As 250 pessoas agora pagam renda, água e luz. Coisa que até aqui nunca fizeram. Só isso é uma grande mudança na mentalidade. Felizmente muitas das pessoas estão a trabalhar e muitos jovens estão a terminar o 12º ano. Já houve dois casos de ingresso no ensino superior.
Os focos de poluição do Nabão são um problema com décadas. O que pode prometer às pessoas em relação à postura deste executivo?
O rio Nabão não é um rio poluído. Já foi muito pior, porque noutros tempos a poluição era química. Havia episódios de mortandade de peixes. Agora temos realmente episódios que são causados pela falta de capacidade de armazenamento da ETAR de Seiça, que está a ser ampliada, obras que deverão acabar em Março.Mas continua a haver descargas ilegais, nomeadamente na zona de Ferreira do Zêzere, Ourém, Alvaiázere. Temos que exigir fiscalização porque o município não tem possibilidade.
Onde é que as entidades reguladoras do Estado falham?
Na falta de proximidade e muitas vezes no próprio pensamento de quem dirige ou dos técnicos. A forma como pensam e como vêem o mundo a partir de Lisboa tem depois consequências negativas para a nossa região. Há uns tempos fui a Lisboa para uma reunião sobre gestão de território. Uma técnica de uma entidade que não vou nomear voltou-se para mim e disse: ‘senhor vereador quando vou à província gosto de ver o verde’. Esta frase diz muito sobre uma forma de pensamento e de actuação e condiciona o desenvolvimento destes territórios.
A revisão do PDM foi um exemplo de…
Do que é a burocracia excessiva. Do nosso país e da falta de coordenação das entidades. A burocracia é importante porque é o que define regras. Para o PDM de Tomar foram mais de três dezenas de entidades que deram pareceres, muitos deles vinculativos apenas. Há prazos para cumprir, mas depois não são cumpridos ficamos nas mãos dos outros.
A NUT II vem ajudar a reorganizar a situação?
Há uma coisa que vem fazer de certeza, que é separarmo-nos de Lisboa e juntar todo o distrito. A Lezíria e o Médio Tejo têm andado muito separados. Mas o que acho mesmo é que falta a regionalização.

Na política é fundamental ter poder de encaixe

A sucessão de Anabela Freitas já estava garantida há muito tempo?
Fui vice-presidente muitos anos, tinha que estar preparado para essa possibilidade. O número dois tem que estar sempre preparado para essa possibilidade. Só mudou o título. O alvo já era grande e então neste mandato toda a oposição apontava as baterias para mim. De várias formas, algumas delas muito pouco éticas no meu ponto de vista. Não sinto mais o peso da responsabilidade agora, para ser honesto.
Como presidente tem uma postura menos intempestiva do que a sua antecessora. É uma vantagem?
Assumo que tento ter essa postura, mas minha natureza até é muito mais impulsiva do que a da Anabela Freitas. Às vezes tenho que ser mais incisivo porque acima de tudo não consigo ser hipócrita.
Como é a sua relação com os vereadores da oposição?
A maior característica que um autarca tem que ter, principalmente quem está como presidente de câmara, é ter poder de encaixe, disponibilidade física, temporal, mas acima de tudo mental. Para ouvir muita coisa, para ser insultado quase todos os dias nas redes sociais, na rua, e manter a racionalidade intacta é preciso muito poder de encaixe. Fora dos holofotes e dos microfones acho que tenho uma boa relação com todos os vereadores até mais do que institucional.
Fazem-se inimigos na política?
Fazem-se muitos amigos porque lidamos com muitas pessoas. Gosto muito de usar citações no sentido de utilizar o pensamento de pessoas que são referências. Martin Luther King dizia que para fazer inimigos não é preciso declarar uma guerra, basta dizer o que se pensa. E, de facto, no exercício da actividade política há sempre pessoas que olham para nós como o inimigo só porque não concordam com alguma decisão.

A relação com os técnicos que têm dificuldades em cumprir ordens

Continuam a existir muitos concursos desertos para obras públicas?
Nos últimos tempos não temos tido, mas esse problema existe sempre e creio que nestes próximos anos vai continuar a existir porque o preço dos materiais ou a imprevisibilidade dos custos com a questão da falta de pessoal vai manter-se.
Há técnicos municipais que mandam mais que presidentes de câmara?
Ao longo dos anos fui dizendo que isso acontece em algumas situações por ausência de liderança. O poder tem de ser exercido com autoridade, sem cedências, embora não me custe reconhecer que há culturas de organização que não mudam de um dia para o outro. No município de Tomar há mais de 600 funcionários e várias chefias intermédias; algumas ainda abusam do seu cargo e do seu estatuto, mas é um problema que queremos resolver.
Devia ser mais fácil despedir essas chefias que tentam contrariar as decisões superiores?
Devia e tenho essa opinião há muito tempo. Por muito que possa ser politicamente incorrecta. As chefias deviam ser de nomeação e obedecer a determinados critérios como, por exemplo: um chefe tem de ser técnico superior, tem que ter uma determinada formação. E devia ser muito mais claro, assumido, tanto para o Estado Central como para as autarquias locais. Ou seja, há uma governação que entra e nomeia. Essa governação cai, os lugares de chefia ficam automaticamente à disposição.

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