Entrevista | 25-05-2024 15:00

“Um museu não é uma televisão e o número de visitantes não é importante para o nosso trabalho”

“Um museu não é uma televisão e o número de visitantes não é importante para o nosso trabalho”
Regresso de David Santos ao MNR ficou marcado por uma polémica que ainda ensombra o responsável

David Santos voltou ao cargo de director científico do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, em 2022, depois de uma década de ausência, para substituir Raquel Henriques da Silva que diz ter sido “despejada”, desconsiderada e posta na rua logo depois das autárquicas.

O seu gabinete foi ocupado por David Santos antes mesmo de conseguir tirar os seus pertences, num regresso que deu que falar e que ainda hoje é assunto tabu para o responsável do museu. Foi nesse mesmo gabinete que agora David Santos recebeu os jornalistas de O MIRANTE para falar dos 30 anos da actividade ali desenvolvida e dos mil visitantes que recebe por mês. No último ano o museu, que vive totalmente de financiamento do município, recebeu 1.500 obras de arte para o seu espólio. Confrontado com a fraca afluência ao espaço, o director desvaloriza os números e diz que o museu não é uma televisão.

Está satisfeito com este regresso ao Museu do Neo-Realismo (MNR). Deve sentir-se mais apto para o lugar? A experiência e os anos dão-nos maior capacidade para enfrentar surpresas e dificuldades. Quando abracei este projecto tinha 36 anos e hoje estou à beira de completar 53. Sou e fui criado em Vila Franca de Xira e tenho uma relação muito forte com o museu, que é uma referência da museologia portuguesa.
A sua relação com os políticos é hoje mais madura, autónoma e profissional. Alguma vez pôs em causa se ia continuar a trabalhar ou não num projecto da sua terra? Não, nunca. Não venho para este projecto por razões políticas mas por currículo profissional. Claro que tive de enfrentar novidades, como gerir equipas e assumir uma programação muito afirmativa que consolidasse o lugar do museu e o ampliasse. Quando assumi a direcção do museu já tinha feito vários trabalhos de curadoria.
Saiu há 10 anos para abraçar uma nova experiência ou zangou-se com Maria da Luz Rosinha e António Redol? Nada disso, continuo a falar bem com todos. Saí porque houve um desafio. Para um historiador de arte, poder dirigir o Museu Nacional de Arte Contemporânea não deixava de ser um grande apelo.
Se aparecesse aqui a anterior directora onde se sentava? O senhor saía da sala? Não vou responder a essa pergunta. Todos os protagonistas merecem o maior respeito, o município, o museu e a professora Raquel Henriques da Silva.
Não houve uma normalização das relações? Não vou fazer nenhuma observação.
Cortou relações com Raquel Henriques da Silva? (Silêncio).
Pelo seu silêncio podemos deduzir que sim. Ela queria rever a colecção permanente do museu. O David Santos quer continuar esse trabalho? Defendo uma museologia activa, contemporânea, que tem de respeitar a designação museu. Um museu não é um centro de arte. É um museu e tem de mostrar a sua colecção. A colecção do museu está numa exposição de longa duração no piso 3. Não há nenhum museu que possa avançar e consolidar o seu lugar se não mostrar a sua colecção. Terá uma revisão de dois em dois anos mantendo a estrutura fundamental. Vamos trocando alguns desenhos e pinturas da nossa colecção, para que continue a haver motivos de novidade para captar visitantes.
Nestes 30 anos o museu foi liderado por Luís Costa Dias, David Santos, António Pedro Pita e Raquel Henriques da Silva. Não foram directores a mais? A história das instituições é feita de muitas pessoas de diversas gerações. Há a passagem de testemunho para outras gerações e a seguir virão outros. Importante é que o museu tenha uma consolidação institucional que permita garantir muitos anos pela frente com novos protagonistas numa nova fase.
Consegue dar-nos números de visitantes? Uma média de mil por mês. Os visitantes estrangeiros por ano não chegam a uma centena. São um número muito reduzido por comparação com os portugueses. Temos alguns visitantes franceses, espanhóis, poucos de língua inglesa, ocasionalmente um ou outro americano. Mas o número de visitas ao museu não é importante.
Imagine que na reunião de câmara um vereador da oposição pergunta ao presidente qual é a média de visitas do MNR. Isso pode mudar a sua opinião para o dinheiro que gastamos com o ordenado do David Santos? Se perguntarem ao presidente porque é que não arranja um director científico que dê mais visitas ao museu, o que faz? Demite-se ou muda de opinião em relação à importância das visitas? Não faz sentido colocar as coisas assim. Não devemos confundir a importância do museu com o número de visitantes. Não podemos conviver com a ideia de audiências como se isto fosse uma televisão. O museu trabalha com uma missão diferenciada. Em primeiro lugar, preservar um património que está à sua guarda, investigá-lo e divulgá-lo. E, depois, ter um programa cultural que abranja todos os públicos.

“Eu luto pelo museu e não pelo lugar”

O museu tem livro de reclamações? Claro.
E tem reclamações? Terá algumas, não sei. Mas também temos livro de elogios e bastante preenchido.
Tem memória de alguma reclamação ou elogio para nos contar? Não. Mas acredito que haja algumas.
Não acha estranho um director científico de um museu lembrar-se dos elogios e não se lembrar das reclamações? Não tenho de memória e isso deve-se provavelmente a não haver reclamações por escrito. Se houvesse uma reclamação forte é óbvio que me lembraria.
Considera o horário do museu aceitável? Sim, está de acordo com as necessidades.
Considera-se num lugar privilegiado onde pode fazer o que quer, sair à hora que quer? Sente-se bem neste lugar? Tenho uma profissão onde exerço funções de director científico e sinto-me bem, porque é uma função em que me identifico enquanto historiador de arte e curador.
Vai lutar pelo seu lugar? Eu luto pelo museu e não pelo lugar, posso dizer-lho olhos nos olhos. Enquanto for útil ao museu e o museu assim o considerar estarei disponível.
Partilha a sua gestão com os colaboradores? Reúne com eles? Todas as semanas.
Concorda com entradas livres?
Sim. A gratuitidade é um princípio de democratização.
A proximidade com Lisboa é vantagem ou desvantagem? Temos de tornar os desafios em oportunidades. O caminho tem de ser feito.
É mais fácil liderar um museu de tutela municipal ou nacional? Nos museus nacionais há uma dificuldade acrescida, porque qualquer acção tem de ser contratada fora. Aqui temos muitos trabalhos feitos internamente.
Como vão celebrar estes 30 anos do MNR? Temos um plano de afirmação do museu a nível internacional. A exposição do Alfredo Cunha vai abrir no Museu Nacional de Arqueologia, História e Arte do Luxemburgo no dia 18 de Julho. Em Fevereiro de 2025 vamos estar no Centro Nacional de Artesanato e Artes do Mindelo, em Cabo Verde, com uma exposição sobre a nossa colecção de arte. E no Paço Imperial do Rio de Janeiro, em Março do próximo ano, também teremos uma exposição com curadoria minha e do António Pedro Pita sobre as imagens e a literatura neo-realista e a sua relação com o 25 de Abril.
O que quer deixar feito quando acabar o seu contrato? Que haja futuro para este museu e seja mais reconhecido e visitado, que seja uma referência da museologia portuguesa e considerado em termos internacionais.

António Mota Redol, filho de Alves Redol, e Arquimedes Silva Santos foram dois dos rostos que contribuíram para a abertura das novas instalações do Museu do Neo-Realismo

Do sonho de muitos nasceu a referência cultural de VFX

Para um conjunto vasto de intelectuais de VFX foram precisas duas décadas de luta para que as novas instalações do Museu do Neo-Realismo saíssem do papel e se tornassem uma realidade. A 20 de Outubro de 2007 o actual edifício do museu abriu ao público e a imagem que marcou a inauguração foi publicada na altura por O MIRANTE: o abraço emocionado de Arquimedes Silva Santos ao filho de Alves Redol, António Mota Redol. À inauguração do museu apareceu a cidade e o mundo cultural nacional em peso. Tanta gente que, recorde-se, obrigou a gestora do protocolo a pedir mais cadeiras para as entidades oficiais. Na primeira fila estiveram nomes como Dias Lourenço, destacado comunista e Maria Barroso Soares, mulher do antigo Presidente da República, Mário Soares. A maior ovação foi quando se pronunciou o nome de António Redol. O filho do autor de Gaibéus não conseguiu dar voz ao discurso que escreveu e foi a presidente da câmara, Maria da Luz Rosinha, que procedeu à leitura com alguns momentos de humor que aliviaram o ambiente emocionado da cerimónia.
Três décadas depois, o trabalho para dar a conhecer o museu e conferir-lhe maior relevância e importância não acabou para muitos que, desde o dia em que o museu foi sonhado, nunca baixaram os braços. Rostos como o de António Redol, que hoje dinamizam a Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo (APMNR), uma entidade que continua a ter um papel importante na vida cultural da cidade. O grupo tem feito um trabalho vasto ao longo dos anos, desde exposições, apresentação e discussão de obras, cedência temporária de espólios e entrega de apoios à publicação de autores, tendo já investido mais de 100 mil euros do seu orçamento a publicar perto de meia centena de novos livros, de estudiosos das obras dos autores neo-realistas, a que se soma a publicação regular da revista Nova Síntese, que aborda diversas temáticas do movimento.
Numa entrevista recente a O MIRANTE, o grupo confessou que é preciso um trabalho persistente e continuado para que o neo-realismo esteja bem presente no dia-a-dia cultural do concelho e do país. “Todos os grandes museus do mundo têm uma associação a promover o museu e a organizar iniciativas paralelas. É isso que fazemos. Só que com outro nome. Somos amigos especiais porque também fomos promotores”, realçava António Redol.

Maria da Luz Rosinha e Cavaco Silva na inaguração das novas instalações do Museu do Neo-Realismo em 2007

O Neo-Realismo ficar ligado ao PCP foi o pior que podia ter acontecido

Questionado sobre de que forma é que o MNR ajudou a valorizar o espólio e a obra dos escritores neo-realistas, em que Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes são dois bons exemplos no concelho de VFX, David Santos diz que a porta está sempre aberta, além do público em geral, às escolas e à academia.
“Não há com as novas gerações algum preconceito com o movimento, como houve no passado. O neo-realismo surgiu no pós-25 de Abril com uma força tremenda e depois houve alterações no país que levaram ao arrefecimento desse entusiasmo. E pior: a um estigma de que seria um movimento condicionado por orientações do Partido Comunista Português. Isso foi o pior que lhe aconteceu, ficar com essa etiqueta. O neo-realismo é amplo e profundo e muito mais do que isso”, reflecte.
Para David Santos, 50 anos depois da revolução o movimento neo-realista tem hoje o reconhecimento e uma influência importante na cultura nacional. “E já sem o estigma dessa ligação conflituosa e desnecessária. Tem relações com a nossa contemporaneidade e alguns escritores não esquecem a importância do neo-realismo”, refere. Já sobre se os autores dessa corrente literária são estudados o suficiente no ensino básico, o responsável do museu diz que a situação já foi pior. Hoje, destaca, o museu tem uma boa relação com as escolas e responde a muitas solicitações destas para visitas guiadas aos seus conteúdos. “Hoje em dia a mensagem da solidariedade, progresso social, democracia e liberdade dos escritores neo-realistas tem de ser reforçada todos os dias. Sabemos que são valores que têm de ser cultivados e trabalhados para que as novas gerações não abdiquem deles”, conclui.

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