Entrevista | 03-07-2024 12:00

Não podemos viver obcecados com a Covid mas é preciso continuar alerta

Não podemos viver obcecados com a Covid mas é preciso continuar alerta
Investigador Miguel Castanho sublinha que "os riscos da Covid-19 passam em muito os riscos das vacinas"

O investigador Miguel Castanho, natural de Santarém, foi um dos rostos da ciência que teve grande mediatismo durante a pandemia de Covid-19, pela forma clara como foi explicando o que ia acontecendo.

A doença voltou a ser badalada devido ao aumento de casos, mas o premiado cientista considera que não há razões para alarme. Diz que não podemos viver obcecados com a Covid, embora devamos manter-nos vigilantes e cumprir algumas regras.

A Covid-19 deixou de abrir telejornais mas continua por aí a fazer vítimas. Esta desvalorização da doença é natural, entrou no lote das doenças banais? A desvalorização é natural porque a pandemia nos cansou e saturou do assunto, mas não quer dizer que a desvalorização faça sentido na prática. Não podemos viver obcecados com a Covid, mas temos de nos manter alerta e vigilantes. Não queremos que se repita uma pandemia, seja de Covid, de gripe, ou de qualquer outra doença.
O número de infecções por Covid-19 aumentou nos últimos tempos, mas alguns especialistas dizem que não há razão para alarme. Concorda? Concordo que não é caso para alarme, mas também não se justifica a imprudência de pensar que o perigo passou por completo. É como atravessar uma estrada: não é caso para alarme, mas só deve ser feito nas passadeiras e olhando para ambos os lados para verificar se podemos atravessar em segurança.
É expectável o surgimento de outra pandemia nos tempos mais próximos, ainda na primeira metade deste século? É impossível dizer, tal como seria impossível dizer se vamos ou não ter um terramoto e qual a sua intensidade. São fenómenos naturais não completamente previsíveis e não controláveis. O que podemos fazer é estabelecer planos de reacção e contingência caso ocorram. Para termos esses planos, precisamos de tirar lições do que aconteceu em 2019 e anos seguintes. Temos de avaliar o que correu bem e o que correu mal e conseguir planear para manter o que correu bem e corrigir o que correu mal.
Estamos muito mais bem preparados agora para lidar com uma realidade dessas? Sim. Desde logo, estamos mais atentos e existe monitorização da evolução do vírus. Existe uma rede de vigilância para a gripe, que tem evitado muitas pandemias, mesmo sem que ninguém desse por isso. Essa primeira linha de defesa tem de ser montada para os coronavírus também. Além dessa primeira linha, é importante continuar a actualizar as vacinas e desenvolver medicamentos antivirais de largo espectro. A nossa investigação incide precisamente nesta frente, de fármacos antivirais de largo espectro.
O que é que devíamos ter aprendido com essa experiência radical e ainda não aprendemos, na sua perspectiva? Os governos deveriam ter aprendido que cooperar é melhor que competir. O cidadão comum deveria ter aprendido que temos de cuidar de alguns aspectos importantes, embora simples, do dia-a-dia, como arejar os espaços interiores para garantir a qualidade do ar em locais públicos, e a não expor outros a perigos de contágio quando ficamos doentes, por exemplo.
A investigação esteve nestes últimos anos muito direccionada para o combate ao vírus da Covid-19. O foco entretanto começou a voltar-se para outras direcções? Já tínhamos interesse em vírus de potencial pandémico antes da Covid-19 e continuamos a ter. Mantemos o interesse no SARS-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, no vírus de dengue e no vírus Zika. Não retirámos o SARS-CoV-2 da lista só porque a pandemia já passou. Ainda está muito mais por descobrir sobre este vírus do que aquilo que já conseguimos desvendar.
Quais devem ser as prioridades, no seu entender, em termos de investigação? A investigação deve ser feita equilibradamente em várias frentes. É preciso investigar sobre o vírus em si, sobre a forma como entra nas células humanas, sobre como constitui reservatórios em outras espécies, sobre vacinas e sobre medicamentos. É o todo que nos permite ficar a saber o suficiente para prever a dinâmica do vírus e como reagir a ela. Puxando a brasa à minha sardinha (um ditado muito legítimo em época de festejos dos santos populares), diria que é muito importante ter um medicamento antiviral de largo espectro, capaz de inactivar muitas espécies diferentes de vírus já conhecidos e, plausivelmente, de vírus que venham a existir. Afinal de contas, os vírus do futuro serão evoluções do vírus actuais.
Encontrou-se vacina contra a Covid-19 em tempo recorde que nem os próprios especialistas vaticinavam. O senhor dizia-nos no Verão de 2020 que “uma solução para o vírus feita à pressa pode agravar o problema”. Ficou surpreendido com a rapidez da resposta? Fiquei contente e aliviado, claro, que uma das opções de tipo de vacina tenha dado muito bom resultado. Outras não deram tão bom resultado, havendo algumas que ficaram pelo caminho e nem chegaram à fase de aplicação. Infelizmente, algumas destas viram-se envoltas em algumas polémicas pelo caminho. A meu ver, algumas dessas polémicas deveram-se a alguma pressa e precipitação. No global, correu bem porque um tipo de vacinas revelou-se muito eficaz, não porque todas as vacinas tenham sido bem sucedidas. Esta é a situação típica: muitas vacinas e medicamentos são testados mas muito poucos chegam ao fim com resultados muito bons.
Falou-se, e ainda se fala, muito de supostos efeitos secundários das vacinas anti Covid. Há alguma fundamentação para haver receio? Não. Os riscos da doença passam em muito os riscos das vacinas. Aliás, alguns efeitos secundários atribuídos às vacinas existem também na situação de doença, de forma mais agravada.
Entretanto continua a não haver uma vacina para a malária difundida a nível mundial. São realidades diferentes? Nem da malária, nem da SIDA, por exemplo, e não por falta de esforço de investigação. Os mecanismos das doenças são diferentes e cada uma requer uma vacina com especificidades diferentes. Na Covid-19 acertámos com uma solução (tal como no sarampo, raiva, etc.), mas na SIDA não. Na malária temos alguns sucessos intermédios.
A ciência voltou à sua ‘bolha’, após um período de grande mediatismo. É a ciência que não mostra o que se faz em Portugal nesse campo ou essa é uma matéria que, para os media, ‘não vende’? Nada vende quando não é o assunto do momento. Não ser o assunto do momento tem a ver com o facto de não ter o foco da maioria das pessoas. A pandemia gerou perturbação e preocupação, logo muita atenção. Essa fase passou. A ciência está exposta e à disposição dos media, mas compreendo que é difícil ‘vender’ o que o público tem pouca disposição para ‘comprar’.

Um fim de ano isolado com Covid

Como se sentiu na pele de comentador televisivo? Gostou da experiência? Senti-me bem. Adaptei-me. Acredito que a Ciência deve ser domínio público, como qualquer actividade cultural. É um bem da sociedade. No caso concreto da pandemia, tratou-se ainda de dar à população informação útil para que cada um pudesse decidir em consciência como proceder em relação a vários aspectos muito práticos da vida quotidiana, como confinamentos, uso de máscara, quarentenas, ou vacinação. Acho que o debate aberto com participação de cientistas e investigadores contribuiu para uma boa resposta à pandemia. No global, considerando todos os aspectos, gostei da experiência, sim.
A Covid passou-lhe ao lado ou também foi apanhado pelo vírus? Ah, ah, boa pergunta. Não me passou ao lado; fui apanhado. Cheguei a fazer uma passagem de ano sozinho em casa, isolado. Felizmente, já tinha passado a fase das estirpes mais perigosas. O isolamento na data festiva foi mais marcante do que a febre e a tosse.
Tomou as vacinas todas? Todas as adequadas à minha idade e condição, sim.

Cientista trabalha há muitos anos no combate aos vírus

Miguel Castanho, 56 anos, é natural de Santarém, onde continua a viver. Casado e pai de duas filhas, é cientista no Instituto de Medicina Molecular e professor catedrático de Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Trabalha há muitos anos no combate aos vírus. O MIRANTE escolheu para Personalidade do Ano de 2020 o cientista Miguel Castanho, pelo seu papel no âmbito da divulgação de informação credível, ponderada e acessível sobre questões relacionadas com a situação da pandemia que vivemos. A escolha foi também determinada pela sua postura cívica, frontal e lúcida, e pelo seu humanismo.

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