O Ministério Público não pode ser um jogo de popularidade
José Manuel Branco vai deixar, ao fim de seis anos, as funções de coordenador do Ministério Público na Comarca de Santarém, que abrange todos os tribunais do distrito.
No início do novo ano judicial, em Setembro, vai coordenar cerca de 170 magistrados na Comarca do Porto, mais do triplo do que em Santarém. Foi o segundo coordenador após a reforma do mapa judiciário de 2014 e fica conhecido por levantar algumas questões polémicas nos relatórios de actividades anuais, como a de revelar que os autos de participação da GNR e da PSP não eram muitas vezes perceptíveis e que a falta de pessoal está a prejudicar a qualidade do trabalho do Ministério Público. O procurador-geral adjunto, residente em Gaia, que gosta de animais, fala de uma forma descomprometida sobre a justiça, apesar de inicialmente ter ficado reticente quanto a dar esta entrevista.
O aumento do trabalho do Ministério Público é porque as pessoas se queixam por tudo e por nada? Ainda bem que não podemos escolher se aceitamos ou não uma queixa. Mas dava jeito que a comunidade nos ajudasse. Há uma festa ou um jogo de futebol e duas pessoas, que até se dão bem, desentendem-se e andam à pancada. Vão ao posto apresentar queixa e passados uns dias ou umas semanas vão desistir da queixa. Gastamos imensos recursos com situações que não têm viabilidade.
Quem retira queixas ou faz denúncias sem fundamento devia ser penalizado? O vice-procurador geral da República já disse que devia haver uma espécie de taxa moderadora para a justiça e eu já partilhei dessa opinião. Apresentar queixa é uma coisa gratuita e às coisas gratuitas não damos muito valor, abusa-se um bocado. O drama é que temos de dar atenção a todas e às vezes temos casos de prova diabólica, em que se pergunta como é que alguém se pode defender de algo que não está concretizado.
Porque é que o Ministério Público parece ter tanta dificuldade em explicar-se, em sair do casulo? Se calhar há outras formas de se sair do casulo sem se dar por elas. Andei aqui anos e ninguém deu por mim, mas considero-me um observador social. Durante imenso tempo não conhecia ninguém, depois alguns advogados começaram a conhecer-me, a cumprimentar-me e a complicar a minha vida.
Mas é preciso aparecer e comunicar mais, ou não? Não há uma resposta certa a essa pergunta, porque as pessoas nunca vão ouvir aquilo que gostariam de ouvir. Há sempre 50 por cento dos intervenientes no processo que não vão gostar de nós e às vezes fazemos o pleno. O Ministério Público não pode ser um jogo de popularidade, porque corria-se
o risco de termos algumas derivas de alguém que para ser mais popular torcesse as regras.
Antigamente viam-se mais procuradores a acompanhar acções no terreno, operações policiais. Agora parece que preferem ficar escondidos. Cada um tem a sua forma de agir. Também não há muitos casos que justifiquem a presença do procurador. A nível mais pessoal, é verdade que às vezes há procuradores que se isolam no seu mundo, que é diferente dos demais. Em Santarém não tenho notado isso, mas preocupa-me essa questão, e não só a nível dos magistrados. Estive em Sintra e chocava-me que as técnicas da Segurança Social usassem os paradigmas de Sintra e Cascais para avaliarem situações de Mafra, que era mais rural. Há um relatório que me marcou em que acharam que uma criança estava em perigo porque no terreiro da casa havia um burro e às vezes apareciam cobras. Para mim, apesar de ser um menino de cidade, era uma coisa natural. A exposição das crianças a experiências diferentes não é necessariamente um mal. Até porque viver no centro de uma cidade corre o risco de ser atropelada.
Porque é que o Ministério Público está a ser tão atacado? É uma situação sazonal. Quando há processos aborrecidos há sempre uma vaga de fundo. Nos 18 anos iniciais da minha carreira a única coisa que consegui alcançar fora do alinhamento foi a primeira acusação de um presidente de junta. A justiça dos anos 90 provavelmente não podia aspirar a muito mais. Entretanto começámos a ter deputados, primeiros-ministros, ministros… Quando se começa a mexer na sociedade, em pessoas que têm um certo relevo é natural que alguém se sinta incomodado. Às vezes as pessoas, quando as coisas não lhes correm bem, dizem que há uma justiça para pobres e para ricos, mas nunca estivemos tão perto de haver mais paridade.
Mas parece que não conseguem ou não querem explicar o que se passa com o segredo de justiça, ou a sua violação. Todos os inquéritos estavam em segredo de justiça, mas actualmente só estão nessa condição se tal for pedido. Num caso que tive há uns anos, em que fui fazer buscas num tribunal, o meu coordenador só ficou a saber pouco tempo antes. Não falei com outros magistrados e havia coisas que nem passavam pelos funcionários, mas vim a saber que alguns meus colegas já sabiam que ia haver buscas. O titular do processo não tem interesse em divulgar informação, porque assim está a sabotar o seu trabalho. Os documentos passam por tantas mãos que é fácil dizer que é o Ministério Público. O que é nosso nós gostamos de estimar, o que é dos outros desleixamos um bocado.
Já não se procuram talentos, já só se quer contratar alguém
A falta de meios é uma das queixas recorrentes. É assim tão difícil resolver isso? Não há ninguém para trabalhar. Há muitas vagas para funcionários que não são preenchidas. Já não estamos no ponto de ir ao mercado buscar talentos, já só nos basta ir buscar alguém. Para a minha geração, o importante era ter um emprego para a vida toda. Agora o conceito não é esse. Também já há vagas para magistrados que não são preenchidas e não se ganhará assim tão mal. Está a acontecer uma situação estranha, em que já não são os jovens que vêm para esta profissão, são pessoas com 40 e mais anos. Isto é dramático porque estamos a correr atrás do prejuízo.
Que implicações é que isso vai ter a nível social e da justiça? Isto vai dificultar a vida destas gerações quando perceberem que no final da carreira vão estar com pensões mínimas e que vão ter uma qualidade de vida negativa. Quando basta ter um canal no Youtube para se ter um rendimento por ter muitas visualizações, as coisas começam a ter um valor relativo. Imputo isto um pouco ao protecionismo que os pais foram desenvolvendo em relação aos filhos. Tenho uma amiga professora universitária que diz que os pais vão perguntar-lhe porque é que o desempenho do filho não é o que se esperava, como se a universidade fosse uma escola primária.
Está a aumentar a falta de bom senso, de as pessoas se colocarem no papel dos outros? O país não tem cultura de diálogo, nem de entendimento. Por isso é que somos os reis das sociedades unipessoais, que é uma contradição no termo. Uma sociedade de mim comigo mesmo. Assim temos a certeza que cada um é o ditador. Cooperativas é outra modalidade que não resulta. Se falarmos uns com os outros conseguimos melhores negócios, melhores soluções.
Porque é que são convocados polícias para irem a um julgamento sumário e passam metade do dia, ou um dia inteiro no tribunal e são dispensados sem serem ouvidos? Não sabemos o que é que o arguido vai dizer. O resultado só se sabe no fim do jogo. Se o arguido vem com um facto surpresa que não estava contado no processo, nenhum juiz aceitaria interromper a diligência para continuar passadas três horas. Temos um acordo de cavalheiros em que ligamos para o posto policial a dizer que já foi entregue o processo ao juiz e que o julgamento vai começar dentro de uns 15 ou 30 minutos, para não estarem mais tempo à espera.
Sabe que muita gente tem a ideia de que um magistrado tem uma vida boa? Na família e menores somos a primeira linha de acesso, que não escolhe horas. Num domingo à tarde podemos estar a resolver a situação de uma criança abandonada. É um trabalho que não escolhe horas. Ligam-nos às três da manhã com questões que às vezes são simples. Ao contrário dos polícias, que têm um dia de compensação por terem feito um serviço nocturno, nós vamos estar no tribunal de manhã. As pessoas não têm noção do grau de dedicação e empenho. É uma profissão de viver para os outros se for exercida como deve ser e com gosto.
Procuradores que fogem de Santarém e o aumento dos conflitos após a pandemia
Foi necessário mudar alguma coisa quando chegou à Comarca de Santarém? Foi necessário perceber no trabalho de equipa que temos de estar juntos e abdicar dos nossos preconceitos, da nossa sobranceria que possa existir, e ceder. Este trabalho é quase como um puzzle.
Porque é que tem sido difícil fixar novos procuradores neste distrito? Muitos dos novos procuradores são mulheres, essencialmente da zona norte do país. O que significa que só se fixariam nesta região se houvesse algo de muito estruturante. Uma grande aposta minha foi aumentar o número de formandos. Quando cheguei só havia um formando numa comarca com 53 magistrados. No ano passado já tivemos 10 novos magistrados em formação. Tenho tentado cativá-los a ficarem na comarca e, curiosamente, temos três que vêm para cá e dois deles devem vir mesmo para ficar.
Quando começou a coordenar o Ministério Público no distrito de Santarém havia uma decisão para instalar o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Santarém num edifício da antiga Escola Prática de Cavalaria. Vai-se embora e nem sequer colocaram a primeira pedra. Não se sente frustrado? Toda a gente sabe que são mesmo necessárias melhores condições, mas percebo que isso custa dinheiro, que há dificuldades orçamentais e temos que nos sujeitar ao que nos dão para trabalhar. Reconheço que os tribunais não são uma área muito interessante para o Governo investir.
Como é que está o Ministério Público nos tribunais da área da comarca? Em 2017, quando iniciei as funções, estávamos na casa dos 15 mil inquéritos, mais ou menos a par com Leiria. Em 2021 desceu para 13 mil. Assim que acabou a pandemia parece que toda a gente perdeu a capacidade de perceber o outro e toda a gente saiu à rua para se atropelar, insultar e atacar. De repente estamos quase nos 18 mil processos. Com a agravante de no ano em que cheguei tinha 54 procuradores e em Setembro serão só 50, se tanto.
Desde que O MIRANTE noticiou a falta de qualidade dos autos policiais, o Ministério Público já recebe participações das forças de segurança mais perceptíveis? Já houve algumas reuniões, algumas com os comandantes dos postos. Foi um incidente particularmente útil, estávamos a precisar de uma sacudidela. Nestes seis anos convivi com quatro comandantes a nível regional da GNR e três da PSP e com esta rotatividade a mensagem perde-se. Nos dias que correm, às vezes é preciso chocar para se atingir algum resultado. Preferia que não fosse assim. Todos gostamos de um bom trabalho e já se notam diferenças. Agora chegam a telefonar ao magistrado para esclarecerem como é que devem fazer determinada participação.
O que é que faz os procuradores perderem tempo nesta comarca? A falta de especialização. Não há procuradores que possam estar só nos julgamentos enquanto outros se dedicam apenas aos inquéritos. Fazer-se uma boa acusação de um acidente de viação de que resultou uma morte, implica que se esteja com muita atenção a ler todos os elementos e analisar muito bem as situações. Não é possível fazer isso quando se tem a noção que daqui a cinco minutos ou meia hora vai ser chamado para um julgamento. O drama está em gerir um tempo que os magistrados não dominam.
Porque é que uma década depois da reforma judiciária ainda é difícil os magistrados da comarca terem o apoio de especialistas em determinadas áreas, como na psicologia infantil e na economia? Não haverá verbas para isso. Há três pessoas em Évora que dão apoio a seis comarcas. Precisaríamos de um especialista, sobretudo na área dos menores, por comarca. O que propusemos foi que se definisse um dia por semana para termos o apoio do especialista.
Já se conseguiu convencer aqueles que preferiam o Tribunal da Concorrência em Lisboa de que está bem em Santarém? É um tribunal suficientemente próximo de Lisboa e os advogados têm sempre forma de imputar os custos das deslocações aos clientes, não é por aí que vão perder dinheiro. Apesar de as entidades e as grandes empresas estarem em Lisboa, há casos que podem afectar outras zonas do país. Tem havido alguma constância neste tribunal, tem trabalhado bem e isso tem esbatido essa questão.
Acha que a recolocação no Tribunal de Santarém do busto do ministro da Justiça do Estado Novo, Manuel Rodrigues Júnior, que tinha sido retirado após o 25 de Abril, foi uma reconciliação com a história? Causou um certo sururu. Podemos arrancar uma série de símbolos, mas isso não resolve nada. Em Olivença, em alguns sítios das muralhas ainda estão os escudos com as cinco esquinas e o Estado espanhol não se sentiu incomodado, não partiu os símbolos portugueses. O que interessa são as mentalidades das pessoas. O passado serve para percebermos como chegamos aqui e quais os erros que convém não repetir. É mais importante ter esperança no futuro.
O pensamento rural e a estranha rudeza de quem anda com navalhas nos bolsos
Quando chegou a Santarém o que é que sentiu? Gostei do território, mas senti a falta do mar. Sente-se muito aqui o peso da interioridade. Estamos perto de Lisboa e se formos a Abrantes há uma placa que aponta para Espanha. Rio Maior está perto de Peniche, mas curiosamente não se nota uma ligação ao mar. Também estranhei a forma de pensar muito rural, bem como a maneira de ser rude; e não é só por os incidentes de andarem sempre com navalhas a pretexto de ser necessário descascar uma maçã ou cortar o chouriço. Questiono-me como é que o cosmopolitismo de Lisboa não passa para aqui.
Consegue circular bem na cidade? Do ponto de vista do peão, Santarém é uma cidade espectacular porque pode fazer-se quase tudo a pé. Mas uma das coisas com que embirro é muito do trânsito passar pela rua nas traseiras do tribunal. Até brinco com isso dizendo que foi a forma que se encontrou para dar um aspecto cosmopolita à cidade, senão isto parecia uma pasmaceira. É incrível como é que há uma fila de carros de manhã do Liceu Sá da Bandeira até ao tribunal. Corta-se estrategicamente duas ou três artérias e de repente isto até parece uma coisa em grande.
Quando passeia pelo centro da cidade no final do dia quais são as sensações que tem? Entristece-me ver tudo parado, abandonado. O património já teve melhores dias e é pena porque a cidade é bonita, encantadora e um local agradável onde trabalhar. Gosto da vista do miradouro de São Bento, que é a minha preferida comparando com a zona do cemitério e das Portas do Sol. A cidade tem muito a seu favor, mas tem coisas que correm mal, como o comboio parar tão longe, a auto-estrada passar mais ao largo, o que se calhar afasta as pessoas.
Ficou a conhecer bem a cidade… A primeira coisa que fiz foi ir ao posto de turismo buscar a planta da cidade. Também fiz um bom roteiro dos restaurantes. Gosto de perceber o porquê das coisas. Depois é perceber onde estou e em que posso ser útil. Há aspectos curiosos como os passeios de turistas sul-coreanos para a Igreja do Santíssimo Milagre.