Museu do Neo-Realismo tem por inventariar milhares de documentos de Arquimedes da Silva Santos
Em Dezembro passam cinco anos desde a morte do médico, poeta, ensaísta, professor e pioneiro pela educação pela arte em Portugal, Arquimedes da Silva Santos. Até hoje não se conhecem eventos agendados para assinalar a data e evocar o nome do escritor da Póvoa de Santa Iria. A filha, Luísa Duarte Santos, guarda com a irmã, Graça, a biblioteca do pai mas milhares de documentos do espólio pessoal de Arquimedes da Silva Santos foram entregues ao Museu do Neo-Realismo que continuam por inventariar.
Uma conversa de Luísa Duarte Santos, editora da Antena 2, com O MIRANTE à “beija Tejo”, na Póvoa, como o pai gostava de chamar à zona ribeirinha. Esta entrevista serve acima de tudo para recordar Arquimedes da Silva Santos e o seu legado, mas também para lembrar que a instituições têm deveres com a sociedade, e que não basta que os seus dirigentes puxem dos galões e digam que vivemos no melhor dos mundos. Esta entrevista é também a prova de que somos todos poucos para valorizar o trabalho daqueles que deixaram Obra e não podem ser ou ficar esquecidos nas prateleiras.
Porque é tão difícil encontrar a poesia do seu pai em livro? A poesia está esquecida. Muita poesia entra no circuito comercial e muitas vezes esse circuito não tem a ver com qualidade. É irrelevante se eu gostava ou não que uma editora pegasse na poesia do meu pai para a voltar a editar. Acho que isso não vai acontecer. O meu pai deixou à nossa guarda 20 cadernos cheios de poesia. Trabalhos inéditos. A única poesia publicada dele foi a que escreveu até 1958, ele deixou de escrever em 1981. Depois voltou a escrever todos os dias até aos anos 2000. Temos esses 20 cadernos inéditos cheios de poesia que nunca viram a luz do dia mas duvido muito que alguma editora os vá publicar.
Lê-se suficientes autores neo-realistas nas escolas? E quem é que lê Júlio Dinis, Garrett ou Eça sem ser os resumos? Cada vez menos. Por acaso ultimamente ando a reler os clássicos. É a sociedade que temos, e a promoção da leitura que temos. Era mais fácil no tempo do meu pai, nos anos 40 e 50, acreditar que se podia mudar algumas coisas e lutar para que as coisas fossem diferentes. Sinto-me na engrenagem de uma máquina trituradora. Cada vez é mais difícil tentar acreditar. E nisso o meu pai era mais esperançoso e utópico. O que vemos diariamente é muito complicado.
Em Agosto de 2022 a Câmara de VFX decidiu criar um prémio nacional de educação, arte e cidadania com o nome do seu pai. Entristece-a que esse processo continue em banho maria? Não fico triste mas gostava que fosse um projecto sério. Pediram-nos, a mim e à minha irmã para darmos a nossa opinião sobre o projecto enquanto familiares. A minha irmã deu as opiniões que entendeu dar mas do que me pareceu não acolheram nenhuma sugestão. Nem estamos envolvidas. Normalmente costuma envolver-se os familiares mas neste caso não. É uma iniciativa de outras pessoas, se querem avançar tudo bem, se não querem, não querem. A única coisa que gostaria é que fosse respeitado o nome do meu pai, em termos de conteúdo, que não fizessem um show-off de algo que leva o nome dele.
O que aconteceu ao espólio do seu pai, que incluía uma das maiores bibliotecas privadas do concelho? Ao contrário do que se disse o meu pai não estava num lar mas sim a viver perto da minha irmã em Alcochete. Quando saíram da casa onde viviam aqui na Póvoa a biblioteca ficou dividida entre mim e a minha irmã e a maior parte do espólio documental foi entregue ao Museu do Neo-Realismo (MNR). Quando saí do museu havia uma fileira inteira de estantes de alto a baixo com documentos não identificados. Sei que o espólio está lá, algum já foi tratado, mas que não há prioridade do MNR de inventariar o espólio do Arquimedes. Se há vontade não parece. Não há papéis de nada, não sabemos em concreto o que existe. Tenho uma ideia porque trabalhei lá e algumas vezes levava algum espólio. Mas têm milhares de documentos dele à espera de serem inventariados. Incluindo cartas de correspondência com escritores. Embora não esteja ainda lá tudo. Temos outra documentação que queríamos deixar no MNR mas decidimos manter guardado.
A Luísa Duarte Santos trabalhou no MNR de 2003 a 2012, na área da investigação e comissariado. Foi orientada no seu doutoramento pela ex-directora do museu Raquel Henriques da Silva. Como viu a forma como ela foi tratada pelo seu sucessor, David Santos? Não quero falar sobre isso. Desliguei-me do museu desde Março de 2012. Fui lá uma vez receber a classificação de serviço. Voltei a convite da professora Raquel para comissariar a exposição do Portinari. Depois quando o António Redol ofereceu um espólio de obras de arte do pai convidaram-me para comissariar a exposição desse espólio. Independentemente do que aconteceu fui ter com a Raquel em 2010 porque trabalhava no museu e resolvi fazer o doutoramento. Notava que havia já bastante material nas reservas e centro de documentação que não estava nada investigado de forma consistente. Não havia trabalho de fundo, escrito, e cada vez que tinha de fazer um comissariado era muito complicado porque parecia que estávamos sempre a partir pedra.
A Raquel Henriques da Silva foi uma das melhores directoras que já passou pelo MNR? Houve três directores, não esquecer o Pedro Pitta. Essas comparações saem do meu âmbito. Até porque não acompanho nem estou interessada em acompanhar determinadas coisas.
Mas deve ter uma opinião sobre o museu e os seus fracos números de visitantes? Não estou a par, como disse desliguei-me em 2012…
Já vimos que também saiu magoada do museu… (Silêncio). Posso dizer que gostaríamos que o inventário fosse feito. Não vamos fazer como outras pessoas que tiraram o espólio de lá, como aconteceu com o Luís Costa Dias, não vamos fazer isso. As pessoas acham que são donas das coisas mas felizmente as instituições são maiores do que toda a gente que passa.
O MNR tem promovido bem o nome e o legado do seu pai? Fizeram uma exposição em 2007 na inauguração do edifício e fizeram uma homenagem nos 20 anos do museu…
Neste quinto aniversário da sua morte não há nada programado para evocar a memória do seu pai?
Que eu saiba não. Provavelmente só quando passarem 150 anos do nascimento… (risos).
Conhecendo o seu pai, o que acharia ele da sociedade actual e do rumo que a vida tem tomado? À excepção das guerras e da pandemia pouco mudou. Ele era homem de muita lucidez e este mundo de hoje não é diferente do mundo que ele viu. Notava-se nos últimos anos com a idade uma transparência da sua sensibilidade. E uma tristeza cada vez maior, sobretudo pela falta de esperança das coisas poderem direccionar-se para um rumo mais humanista e solidário. Ele viveu os últimos anos desiludido com o mundo que ia deixar. Ele teve-me a mim e à minha irmã já tarde porque era-lhe difícil pôr neste mundo tão complicado seres que amava. Mas era também muito esperançoso e positivo.
Ter uma estátua na cidade em homenagem a Arquimedes da Silva Santos basta? Não merecia mais? A cidade honra bem a sua memória e legado? E também deu nome a uma praceta. Para mim a estátua está bem naquele local. A biblioteca também recebeu uma exposição aquando do centenário do seu nascimento. Ele dizia muitas vezes que gostava que o seu nome fosse associado à biblioteca da Póvoa. Nem que fosse uma estante pequenina com o seu nome. Acho que fazer homenagens vazias em que meia dúzia de outros se servem disso para ficar na fotografia não é a forma de homenagear o Arquimedes. É uma forma de outros usarem o seu nome. Agora projectos e iniciativas que promovam as acções e a intervenção que ele teve, em domínios tão especiais como a educação, arte, cidadania, aí sim. E que ajudem as crianças e jovens que era o foco dele.
Aviões são uma dor de cabeça
Luísa Duarte Santos vive na Quinta da Piedade e da sua casa tem vista para o Tejo. Entristece-a o estado em que se encontra o mouchão e diz que visita a zona ribeirinha com frequência, tal como o pai, pela paz de espírito que esta lhe dá. Vai aos supermercados mas, confessa, não faz muita vida na cidade. Ainda assim diz que a Póvoa de Santa Iria é uma boa localidade para viver. Isto, claro, até as alterações da NAV no aeroporto de Lisboa terem vindo destruir o silêncio. “É um inferno. Já assinei a petição e ainda ontem em casa no fim-de-semana foi horrível. É uma falta de descanso tremenda. O aumento do ruído dos aviões não é uma percepção das pessoas. É constantemente a passarem em cima das casas a descolar. Antigamente não se ouvia tanto”, critica. Sobre o legado do pai diz que a perspectiva é que todos sejamos esquecidos no futuro, excepto as obras que deixamos para trás.
“O legado do meu pai, poético e de acção e de percursor da educação pela arte, seria um bom mote para se fazerem coisas sérias na cidade ou no concelho, ajudar as crianças e os jovens que aqui vivem. Que sejamos, como ele dizia, pessoas boas no dia a dia e fazendo o melhor que conseguirmos pelos outros. O exemplo dele e a mensagem dele continua vivo”, conclui.
Uma historiadora que aprendeu a vida com os mestres
Luísa Duarte Santos tem 59 anos e é a filha mais nova de Arquimedes da Silva Santos. Cresceu e vive na Póvoa de Santa Iria. É doutorada em História da Arte e trabalha na Antena 2, onde é editora da plataforma online. Nos tempos livres gosta de passear e ultimamente ir para o campo e jardinar. Ler é também um dos seus passatempos preferidos, tendo acabado de ler um livro de D.H. Lawrence. Tira-a do sério as injustiças, pessoais e sociais e confessa já não ter sonhos por concretizar. Recorda o pai como uma pessoa afectuosa que ia demonstrando o seu afecto nos pequenos gestos do dia a dia. “Guardo boas memórias dos tempos com ele. Numa fase mais adulta o que sinto falta é também das conversas e das reflexões que tínhamos”, partilha. Das memórias de infância guarda imagens de almoços do pai em casa com convidados como Alves Redol, João José Cochofel, Lopes Graça, Carlos de Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues, entre outros. “Foi aí que aprendi imenso sobre a vida, nesses caldos de conversas que duravam horas. Antigamente havia tempo para conversar”, recorda.
Arquimedes da Silva Santos morreu a 8 de Dezembro de 2019 aos 98 anos. Nesse ano recebeu a medalha de honra da Câmara de Vila Franca de Xira pela sua intervenção em prol da Cultura, Educação e Arte no país.