Entrevista | 22-12-2024 15:00

Cancro pode provocar doenças cardiovasculares que têm influência nos tratamentos oncológicos

Cancro pode provocar doenças cardiovasculares que têm influência nos tratamentos oncológicos
TEXTO COMPLETO DA EDIÇÃO SEMANAL
Mariana Saraiva é responsável pela consulta de cardio-oncologia no Hospital CUF Santarém

A médica Mariana Saraiva, responsável pela Consulta de Cardio-Oncologia no Hospital CUF Santarém, explica nesta entrevista as formas como se relacionam as doenças cardiovasculares e as doenças oncológicas.

Há doentes que desenvolvem doenças do coração durante ou depois dos tratamentos, alguns décadas após terem vencido o cancro. Em muitos casos, os doentes oncológicos têm necessidade de passar por tratamentos associados a cardiotoxicidade, como a quimioterapia e radioterapia, entre outros, e as sequelas cardíacas podem mesmo comprometer a continuidade dos tratamentos. Para responder às necessidades destes doentes, o Hospital CUF Santarém criou a Consulta de Cardio-Oncologia, cuja equipa tem a capacidade de discutir alternativas terapêuticas com os especialistas em Oncologia, com vista a optimizar o tratamento oncológico e a torná-lo mais seguro para o doente.

Qual é a relação entre o cancro e as doenças cardiovasculares? As duas partilham factores de risco. Por exemplo, o tabagismo é factor de risco para ter cancro do pulmão, mas também para ter um enfarte agudo do miocárdio. Depois há outros factores como hipertensão, diabetes… também sabemos que pelo ambiente inflamatório que ambas geram nos órgãos, elas podem potenciar-se uma à outra. Um doente oncológico tem maior risco de desenvolver doença cardiovascular e vice-versa.
Que tipo de influência têm os tratamentos? As doenças relacionam-se de múltiplas formas. Preocupa-nos o risco que os tratamentos oncológicos representam para as doenças cardiovasculares. E não é só a quimioterapia, qualquer tipo de tratamento pode ter toxicidades sob várias formas.
Os tratamentos a nível cardiovascular potenciam o cancro? Neste caso a relação é mais ao contrário. Sabemos através de alguns estudos que há fármacos para tratar a hipertensão arterial ou insuficiência cardíaca que reduzem o risco de doença oncológica.
Os efeitos adversos surgem apenas durante o tratamento ou podem verificar-se também depois? Podem surgir durante e depois do tratamento. Estas preocupações começaram a surgir precisamente pelos sobreviventes. Temos sido cada vez mais eficazes a tratar o cancro, mas verificou-se que, por exemplo, nos sobreviventes de linfomas em idade jovem que faziam tratamentos com quimioterapia e radioterapia, apareciam aos 50 ou 60 anos com formas muito graves de insuficiência cardíaca. Em algumas situações até com necessidade de transplante cardíaco.
Como é que são orientados os procedimentos tendo em conta a influência dos tratamentos? Actualmente o que se advoga é que as preocupações têm de ser antes, durante e depois dos tratamentos. Antes, para tentarmos, nas pessoas que já têm doença cardiovascular, tratamentos oncológicos eficazes. No caso da radioterapia, por exemplo, hoje é possível fazê-la mais localizada, no sítio onde pretendemos, poupando os tecidos cardíacos.
Há tratamentos para minimizar o efeito dos tratamentos oncológicos? Há a cardioprotecção, ou seja, medicamentos que minimizam os riscos. Também estabelecemos estratégias de vigilância. Dependendo do risco que se estabelece no início dos tratamentos, os doentes vão fazendo com maior ou menor periodicidade alguns exames. E há quem tenha de ser acompanhado por um cardiologista desde o início dos tratamentos.
Os impactos da relação destas doenças têm mais incidência nas pessoas mais jovens ou nas idosas? Não há dados concretos, mas devido ao facto de a população idosa ter mais doenças caidiovasculares e factores de risco a incidência será maior. Mas temos jovens sem qualquer evidência de doença cardíaca que vêm a desenvolvê-la depois e pode ser durante o tratamento ou décadas mais tarde. É por isso que se tem feito um trabalho de sensibilização dos doentes e dos especialistas de Medicina Geral e Familiar, que vão seguir as pessoas durante toda a vida. O risco nos doentes oncológicos nunca desaparece. Nas faixas etárias mais avançadas encontramos mais vezes as duas doenças em conjunto. Mas pode acontecer em qualquer idade. Já tivemos doentes com 30 ou 40 anos sem qualquer doença cardíaca prévia que desenvolveram insuficiência cardíaca grave por causa dos tratamentos oncológicos.
Há algum factor que evidencie existir mais problemas em algum tipo de pessoas do que em outras? Há de haver alguma propensão genética e outros aspectos que ainda não conseguimos apurar que justificam que um doente de 40 anos faça todo o tratamento sem problema e outro tenha problemas. Ou outro com 70 anos com doença cardíaca prévia faz os tratamentos e nada acontece e outro vai ter complicações. O facto de existir doença cardíaca e factores de risco aumenta esse risco, mas isso não explica todos os casos.
Quais são os sinais de alerta? São os de doença cardíaca: dor no peito, falta de ar, inchaço das pernas, cansaço progressivo e desmaios. É importante haver uma educação desde início quando o doente é proposto para fazer determinado tratamento e depois, quando o termina, avaliar qual é a vigilância a longo prazo que deve ser feita, se tem de fazer ecocardiograma periodicamente, por exemplo. Isto é importante, nem que seja para não diagnosticarmos doenças cardíacas em fases avançadas e travar a progressão da doença.
Qual é a importância do cardiologista no tratamento oncológico? Num doente que já tem doença cardíaca é importante para se perceber se a sua situação permite ou não fazer determinados tratamentos. Tendo esta diferenciação em cardio-oncologia, os cardiologistas também conseguem discutir com o oncologista a possibilidade de adaptar alguns tratamentos, tentando-se escolher formas menos agressivas para o coração. Também tem o papel de vigiar e tratar as doenças que surjam durante os tratamentos.
Uma pessoa que vai iniciar tratamentos oncológicos deve consultar primeiro um cardiologista? Não se processa dessa forma. O doente vai à oncologia e de acordo com o tipo de cancro, o oncologista vai definir quais são os tratamentos. A par disso, vai avaliar se tem história de hipertensão, diabetes, ou outra situação cardíaca, e pela estratificação de risco vai definir se deve começar logo a ser acompanhado pela cardiologia ou se basta fazer vigilância cardíaca. A maioria dos doentes o que fazem, durante os tratamentos, são algumas análises clínicas, electrocardiograma e ecocardiograma para se perceber se há ou não doença cardíaca. Os que já têm doença devem ser reavaliados antes de começarem os tratamentos.
Quais são as consequências de uma doença cardiovascular não tratada num doente oncológico? São os inerentes à descompensação dessa doença, que podem passar por morte súbita, enfarte, insuficiência cardíaca agudizada que podem motivar internamentos. O facto de ter uma doença cardíaca não tratada pode fazer com que não seja elegível para alguns tratamentos, que são potencialmente curativos, e não ficar curada do cancro. O que tentamos é que mesmo que haja algum agravamento da doença cardíaca, esta se mantenha em níveis que permita fazer uma terapêutica oncológica eficaz. Mas quem tem insuficiência cardíaca nas formas mais graves, muitas vezes não pode fazer alguns tratamentos. O nosso objectivo está em sermos facilitadores da quimioterapia e garantir que fazem um tratamento tão eficaz quanto as outras pessoas, sem um risco acrescido.
O que é que as pessoas podem fazer para evitar as doenças cardiovasculares? É o estilo de vida, que é o mais difícil para as pessoas. Tomar um comprimido é o mais fácil. O ideal é ter actividade física, os fumadores deixarem de fumar, haver cuidados com a alimentação evitando as gorduras e excesso de sal, ter atenção ao peso. Isto é a chave para prevenir a doença cardíaca, mas também a doença oncológica, e está ao alcance de todos. A maioria dos doentes podem fazer alguns tipos de actividade física.
Como é que as pessoas reagem quando lhes dizem que têm de fazer tratamentos por doença cardíaca, quando já têm um cancro?
Há pessoas que ficam assustadas e que pensam que têm de parar os tratamentos de quimioterapia. Há outras que estão assustadas com a doença oncológica, que sabem que é potencialmente fatal, e não percebem a preocupação com o coração até porque não notam sintomas. O nosso objectivo é manter os tratamentos oncológicos, garantindo sempre a segurança do coração.

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