Entrevista | 26-12-2024 12:00

Para fazer perguntas a José Saramago não era preciso fazer-lhe continência, mas era quase

Para fazer perguntas a José Saramago não era preciso fazer-lhe continência, mas era quase
João Céu e Silva, jornalista e escritor, revela que próximos livros são com figuras bem vivas

Esta é a segunda parte da entrevista ao jornalista e escritor João Céu e Silva, o autor de Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes, que acaba de ser reeditado com a informação de que o escritor está desde final de 2023 irreconhecível devido a um estado de "demência".

A reedição do livro tem novidades em relação à primeira, mas é o texto de introdução do livro que conta sobre o estado de saúde do autor de "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura", que causou emoção e consternação. João Céu e Silva tem uma longa história como jornalista e operário da escrita. A sua paixão pelo jornalismo foi alimentando o desejo de biografar figuras da nossa cultura, que ia entrevistando no exercício da sua profissão, e hoje reúne sete grandes Viagens com as figuras marcantes da cultura portuguesa, a começar em José Saramago e a acabar em Manuel Alegre e Maria Filomena Mónica. Esta segunda parte da entrevista foca-se quase sempre no seu trabalho como autor, mas o jornalista está sempre presente. João Céu e Silva já publicou cinco livros de ficção dois deles premiados. Nesta entrevista a O MIRANTE o escritor dá conta que vai continuar a publicar outras Viagens, assim como livros de ficção que é onde mais se sente realizado a escrever.

Agora que já não é obrigado a viver o dia a dia de uma redacção ainda sente alguma necessidade de intervir ou passou-lhe a febre? Sinto sim, porque a escrita desta colecção, Uma Longa Viagem com, obriga-me a pôr os escritores a falarem de política, a darem opinião, a mostrarem o seu pensamento. Obriga-me a colocar questões, e a saber dar-lhe seguimento, a obter as respostas que eu acho que não podem ficar por dar. Eu é que guio a conversa, por isso tenho que estar bem informado.
Algum dos próximos livros são de figuras desaparecidas? Não, vão ser figuras bem vivas. O próximo está praticamente fechado. E é uma mulher. Para depois ainda tenho dúvidas, mas estou a negociar, entre aspas, com uma figura de grande relevo da nossa vida pública.
A Viagem com António Lobo Antunes é um livro de grande tensão, de algum dramatismo, o escritor sempre foi muito bom a dar entrevistas e a falar de si e da sua Obra, mas repete-se em muitas das questões, embora usando outras palavras. Lembra-se de estar a montar o texto? Deu por isso ou é impressão nossa? As entrevistas ao António Lobo Antunes decorreram a par das entrevistas a José Saramago. Tinha começado o Saramago antes e, entretanto, surgiu a hipótese de fazer a Viagem com António Lobo Antunes. Durante os primeiros meses não lhe disse que estava a trabalhar com o José Saramago, imaginei que ia criar um caos na nossa relação. Respondendo directamente à vossa questão: o livro nasceu de muitas dezenas de entrevistas, e aquilo deu um número brutal de caracteres. Mais de quatro vezes o que eu podia publicar no livro. Foi um grande trabalho de depuração do texto, sem dúvida o livro mais difícil porque era só o resultado das transcrições. Era tão, tão gigantesco, que os editores depois reduziram aquilo a quase nada… do meu ponto de vista de autor.
E agora nesta nova edição voltou a haver cortes no texto original para entrar nova matéria… Voltei a sentir esse problema, um quarto do texto desta reedição é novo. E tem outras notícias sobre o estado de saúde, o que gerou alguma polémica, mas ao qual eu não podia ficar indiferente.
Mas podia ter evitado? Não. Um livro biográfico que saísse em 2024 de um escritor, que não dissesse o estado actual da sua saúde, ia ser gozado na Europa, e na América, e em qualquer parte do mundo onde o autor é lido. Fiz questão de ser verdadeiro. Tive muito recato na forma como o escrevi, porque gosto muito de António Lobo Antunes, tenho muita amizade por ele e respeito intelectual, mas não podia deixar de fazer o meu trabalho.
Custou-lhe algumas críticas de que não estava à espera? Por parte dos leitores não, mas uma certa matilha que anda nas redes sociais não gostou, e certamente muito poucos leram o livro. Tive o caso do Rodrigo Guedes de Carvalho que escreveu um post no Instagram devastador a incitar à difamação, quando nem ele ainda tinha lido o livro. Neste caso estamos a falar de um jornalista conhecido da televisão. Mas as redes sociais têm esse papel de espalhar o insulto.
Como é que a família aceitou esta edição com as revelações sobre o estado de saúde? Ficou toda a gente chocada. Todos os meus amigos, e todas as pessoas que me conhecem ficaram chocadas.
Chocadas porque a informação tem conteúdo, faz doer, principalmente a quem gosta dele. Estas longas viagens são uma série que eu sei que vai ficar na história da cultura portuguesa. Isto é o que me dizem também, mas eu sei o valor do meu trabalho. Muita gente séria telefonou, enviou-me e-mails, solidarizaram-se comigo.
Quantos livros leu do António Lobo Antunes? Li todos. O mesmo com José Saramago. Li todos os livros de Saramago, na altura que fiz o trabalho eram 33. Um dia ele disse-me textualmente: “homem, você é maluco? Ninguém lê 33 livros meus”. O Lobo Antunes nunca diria isso porque é suficientemente convencido para achar que eu tinha que ler tudo. E eu li tudo, todos os livros de sua autoria. Para cada sessão levava sempre um livro que já tinha lido, ou relido, e sobre o qual ele depois se recusava comentar, porque dizia que não se lembrava. E eu sabia que se lembrava. Mas ele era assim, tinha um ego muito grande, e eu tinha que saber lidar com isso.
Alguma vez tentou contrariar ou dourar a pílula como faziam o José Cardoso Pires ou o Nelson de Matos, que lhe disse uma vez que ainda não tinha dito nada sobre determinado livro porque só o tinha lido uma vez? Sim. Como faço muito crítica literária, estou acostumado a situações destas. Disse várias vezes ao José Saramago e ao António Lobo Antunes que não gostava, ou gostava mais ou menos de determinado livro. Muitas vezes dei a minha opinião porque eram eles que a pediam. O Lobo Antunes, às vezes, ficava chateado mas era por pouco tempo.
A Viagem com António Lobo Antunes, às vezes, é quase uma dor de alma para quem lê, porque ele está sempre em sofrimento, embora a sua vida seja escrever. Não é estranho que um homem que acha que nasceu para escrever esteja quase sempre em sofrimento? António Lobo Antunes é talvez o maior escritor português das últimas décadas. Vivia só para escrever. Para ele não havia nada no mundo mais importante que a literatura. Por isso ele quis criar uma imagem sobre si próprio.
Por isso a repetição até à exaustão desse sofrimento causado pela escrita? Não me custa reconhecer que estas longas Viagens são aproveitadas pelos autores para deixarem uma imagem para a posteridade. E o meu trabalho é fazer com que a imagem seja o mais parecido com aquilo que eles são. Todos os académicos, todas as pessoas que escrevem sobre Lobo Antunes ou José Saramago, têm que ler as Viagens que eles fizeram comigo.
Acredita que tem assim tanta importância um livro a mais ou a menos na vida de um escritor? Tanto José Saramago como Lobo Antunes lutavam por um livro novo como se luta por um último desejo? Os escritores vivem para escrever. José Saramago só começou a ser respeitado como escritor depois da publicação de Levantado do Chão. Ninguém o respeitava como escritor. Quando começa a ser respeitado, diz: agora vão ter que me ler. É isso que ele quer. O Ensaio sobre a Cegueira é um grande livro, um livro fácil, mas um grande livro. O Ensaio sobre a Lucidez não gosto. Acho que é um livro que não faz falta. O Lobo Antunes, depois do Saramago ter ganho o Prémio Nobel escreve três ou quatro livros que não fazem falta nenhuma. Mas os escritores, por norma, têm que continuar a escrever. Para se sentirem completos têm que escrever e publicar.
As Viagens com Miguel Torga e Álvaro Cunhal têm registos diferentes porque nasceram do trabalho de pesquisa e não das entrevistas. Põe a hipótese de escrever Viagens com autores já falecidos? Não, mas há figuras ainda do século XX que mereciam. O meu problema é o tempo. Tenho outro problema que é o de dizerem que, depois do livro publicado, os autores morrem. Aconteceu com Álvaro Cunhal e Vasco Pulido Valente. Levo a coisa para a brincadeira mas o caso é sério.
Durante o trabalho para estas biografias fez-se muitas vezes de morto, ou seja, teve que ouvir o que não queria e não precisava? Sim, sim, muitas vezes, de parvo também. Depois volto aos assuntos e acabo por conseguir o que pretendo.
Guardo uma memória do filme "José e Pilar" em que o João Céu e Silva não fica muito bem na fotografia. Isso foi uma cena muito curiosa, numa entrevista que tinha marcado com a Pilar em que ela me pediu para ser filmada. O realizador, um tal de Miguel Mendes, reproduziu no filme uma conversa que estávamos a ter em off. Houve um momento em que a entrevista parou. Como a Pilar estava um pouco ausente nas respostas, aproveitei para a provocar com uma conversa que não fazia parte do guião, e foi isso que o realizador achou que dava interesse ao filme. Não se livra da fama de gostar de denegrir a imagem dos jornalistas. Eu fico com o ditado popular que diz que "nesta vida quem vai à guerra dá e leva".
José Saramago foi mais fácil de entrevistar que António Lobo Antunes? Não, não, não. O Lobo Antunes deu mais trabalho na montagem do livro. O José Saramago não era muito exigente, não tinha que lhe bater continência quando estava a fazer as perguntas. Mas era quase. Ele tinha sempre aquela cara séria. Costumava dizer: “quando os jornalistas entram aqui em casa para fazer uma entrevista sobre um livro, vejo logo pela cara deles o que é que querem”. Como pessoa o José Saramago foi mais complicado para escrever a Viagem. Eu achei que ia ser o Vasco Pulido Valente, mas não foi. A partir da quarta ou quinta conversa, ele gostou do tom e fomos por aí adiante.
Mas é verdade que Pulido Valente abandonou uma das conversas quando lhe falou da Maria Filomena Mónica? Fez isso uma vez. Guardei o assunto para a última pergunta da entrevista porque sabia que ele ia reagir mal. E assim aconteceu. Levantou-se, virou-me as costas, nem disse bom dia nem boa tarde, e foi à sua vida.
Quantos anos demorou a escrever A Viagem com José Saramago? Dois anos. Estes livros normalmente demoram sempre uma média de dois anos. Têm três ou quatro revisões e é reescrito pelo menos duas vezes.
Posso deduzir que o trabalho com a Maria Filomena Mónica, sendo o mais recente, foi o que lhe deu menos trabalho? A Filomena Mónica tem o dom da palavra. Ela fala muito bem e eu já a tinha entrevistado. Já conhecia quase todos os livros dela. Portanto, não foi um livro difícil. Foi difícil conseguir novidades porque pelo meio havia a sua autobiografia, "Bilhete de Identidade", e tinha que conseguir ir mais além. E acho que consegui graças ao mérito dela.
Foi o biógrafo que a escolheu? Sim, sou sempre eu que escolho. Já tive várias pessoas que se fizeram convidadas para a colecção, mas eu nunca aceitei, até hoje.
Partilha com os biografados antes de publicar? O contrato é o seguinte: eu escrevo e edito o livro, e só quando ele vai para as livrarias é que chega às mãos dos biografados. Ninguém, nem o José Saramago ou o Lobo Antunes tiveram alguma vez conhecimento daquilo que estava no livro antes de ele ser publicado.
José Saramago ou Lobo Antunes, só para falar destes dois, nunca lhe apontaram o dedo e disseram: não me traias? Não, não. Houve sempre uma base de confiança. E no dia em que o José Saramago aceitou fazer um livro comigo, a partir daí ninguém mais pode dizer que o Saramago era uma pessoa inacessível, e isso também me abriu portas para outros trabalhos.
A Sereia Muçulmana” e “Adeus África” são dois romances da sua autoria que lemos e gostamos muito. Não lemos o Guadiana, que foi prémio Joaquim Mestre, mas já ouvimos dizer que é uma boa história. A sua paixão pela literatura, pela escrita, faz de si também um romancista com muitos leitores, apesar de uma vida de muito trabalho no jornalismo e nestas Viagens. As regras do mercado editorial mudaram radicalmente nos últimos anos. Hoje escrever um grande romance pode nem ser notícia. O autor tem que escrever um romance que vá para o Tik-Tok . Tenho três romances inéditos, mas não pretendo publicar porque não posso estar a publicar mais do que um livro por ano. Por isso a ficção está ficando de parte. Continuo a escrever ficção nos tempos livres, porque a ficção é o que me distrai mais. Nesta altura só escrevo ficção nos tempos livres porque estou a acabar outra Viagem. Depois, quando houver tempo para publicar, penso nisso. Mas sim, o Guadiana é um livro de que me orgulho, e um dos que mais gosto porque recupera memórias de um tempo que já está quase esquecido e tudo aconteceu ainda há pouco tempo.
O problema é que já lá vão os tempos em que qualquer livro de um nome conhecido tinha pelo menos uma recensão. Agora, assim como aparecem desaparecem sem ficarem mais do que uma semana nas livrarias... Hoje em dia não se pode fazer um romance que tenha princípio, meio e fim. Os leitores não estão muito interessados nisso. A maior parte dos livros que têm saído, e têm venda, ou são policiais ou são histórias de jovens. Se o José Saramago e o Lobo Antunes aparecessem agora, não eram estrelas. Os temas que eles agarraram para escrever não interessariam a ninguém. A literatura e o jornalismo estão no mesmo limbo, ninguém sabe para onde é que estamos a caminhar.
Está a querer dizer que os novos autores como José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares não vingavam se tivessem nascido uns anos depois? São pessoas que tiveram a sorte de ainda aparecer no início do século, e puderam fazer carreira, e começar a escrever com liberdade os temas que escolheram. Hoje os escritores escrevem para certos leitores, aqueles que as editoras já sabem que procuram certos livros baseados em certos temas.
Simplificando, está a falar dos livros de autoajuda cheios de frases como é o caso do Manuel Clemente e do Raul Minh'alma só para dar dois exemplos?
As pessoas estão tão em dúvida consigo próprias, com a vida, perplexas com o que está a acontecer no mundo e na sociedade, que procuram uma espécie de autoajuda, que é o que esses livros normalmente contêm. E são reflexões, só que são desprovidas de qualquer valor intelectual. São apenas frases, produtos comerciais.

À margem

Um biógrafo e romancista com trabalho feito e muito por fazer

Poucas vezes na história de O MIRANTE publicámos uma entrevista em duas partes, em duas edições seguidas. João Céu e Silva merece, não só porque aceitou responder a todas as perguntas do jornal, como pelo percurso profissional como jornalista e escritor. Os livros biográficos da sua autoria, que contam as várias viagens que o jornalista realizou com 7 das personalidades mais marcantes da vida política e sócio-cultural dos últimos cem anos, justificam a excepção. Quem tiver o prazer da leitura, e se identificar com as figuras biografadas, encontra nas páginas destes livros um trabalho de grande relevância no panorama da edição em Portugal. As Viagens com José Saramago e António Lobo Antunes são exemplares, mas também as realizadas com Maria Filomena Mónica e Manuel Alegre, só para citar mais duas que nos deixaram rendidos ao trabalho do autor de "Adeus África" e Sereia Muçulmana". Na passada edição a entrevista foi focada no seu trabalho como jornalista. Desta vez a conversa é sobre os livros e o trabalho do escritor que, para além de biógrafo, é romancista com vários livros publicados e muitos outros em fila de espera.

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