Carlos Calado: um neurocirurgião notável e respeitado que não esconde as ambições políticas
Carlos Calado, 55 anos, é um conceituado neurocirurgião que opera nos sistemas público e privado, dá aulas, é investigador e, como se não bastasse, em 2021 aventurou-se nos meandros da política. Acabou eleito presidente da Assembleia de Freguesia da Cidade de Santarém na lista do PS. Confessa que gostava de ser presidente da Câmara de Santarém, mas para já dá prioridade à medicina e à família numerosa que constituiu.
Carlos Calado é neurocirurgião do Sistema Nacional de Saúde (SNS), dividindo a actividade por dois hospitais públicos, o de São José, em Lisboa, onde exerce há cerca de 30 anos, e o Hospital Distrital de Santarém (HDS). Tem exercido também cirurgia no sistema privado, nomeadamente no Hospital Privado de Santarém que mais tarde deu lugar ao Hospital CUF Santarém. No Hospital de São José desenvolveu actividade cirúrgica em diversas áreas, como coluna e crânio, integrando agora a equipa de neuro trauma, mas a sua paixão é a cirurgia da coluna vertebral, que há uns anos praticou em Santarém no âmbito de um programa de combate às listas de espera. Trabalhava para uma clínica privada que tinha alugado o décimo piso do hospital público para esse fim.
“Posso dizer com orgulho que fui o primeiro cirurgião a operar à coluna em Santarém de uma forma regular. Gostaria de ter continuado mas não tem sido possível, porque não tem havido colegas interessados ou suficientemente motivados. Não posso fazer uma equipa sozinho. Tenho alguns colegas interessados em vir, só que os atractivos do SNS não são tão convincentes quanto os do privado”, afirma, considerando que não tem havido um investimento do Estado na sua especialidade nesta região. Já noutras especialidades, o HDS tem conseguido captar médicos, tendo conseguido criar equipas de cirurgia plástica e de cardiotorácica, realça. “Se conseguirmos motivar duas pessoas da mesma especialidade já conseguimos fazer uma equipa. Tenho esperança de conseguir mobilizar alguém”, diz.
Tal como o senhor, muitos médicos trabalham em hospitais públicos e privados. Essa é também uma boa forma de avaliar no terreno os prós e contras de cada modelo. Onde se sente mais confortável? São meios diferentes mas consigo conviver perfeitamente com as especificidades de cada um. Não sinto grande diferença na minha prática, mas tenho pena que o SNS seja bastante lento na prestação de cuidados. Embora tenha imensa qualidade…
Isso deve-se essencialmente à falta de recursos humanos? Acho que, neste momento, esse é o principal problema. E o Hospital de Santarém é um bom exemplo, pois tem instalações magníficas, temos um bloco operatório que levou anos e anos para ser remodelado e redimensionado, com uma capacidade muito boa e que não é aproveitada na sua totalidade, nem pouco mais ou menos, porque não temos profissionais que cheguem.
Por que motivo os médicos não querem trabalhar no SNS? Penso que a principal limitação será a compensação económica, que nos privados consegue ser superior ao público. Há uma coisa em que tenho imenso orgulho, que é poder ajudar as pessoas que não conseguem aceder ao sistema privado. No hospital público conseguimos chegar a toda a população e essa função social do SNS não deve ser descurada. A saúde deve estar ao alcance de todos.
Trabalha numa área muito sensível da medicina, em que o tempo urge. Consegue dar resposta aos casos mais urgentes no tempo adequado? Não conseguimos dar resposta a todos os casos atempadamente. Procuramos dar resposta a isso com empenho, dedicação, com grande interesse pelos problemas dos doentes e procurando soluções que sejam mais rápidas. Como o sistema está muito enferrujado, tentamos usar os meios à disposição e os conhecimentos que temos para tentar ser mais céleres.
Temos doentes a mais para a resposta existente a nível da saúde. Isso é sintoma do envelhecimento da população? Sim, mas não só. A esperança de vida tem aumentado e as necessidades de saúde são tanto maiores quanto avança a idade do indivíduo. Mas também há uma busca cada vez maior pelos cuidados de saúde. As pessoas estão mais despertas para as questões da saúde.
Santarém vai ter mais um hospital privado. O que pensa disso? Demonstra que a população está carente de cuidados de saúde e que o SNS não consegue preencher todas as necessidades da população. É um bocado a lei da oferta e da procura.
E vai haver recursos humanos para tanta oferta? Depende do grau de motivação. As pessoas hoje pretendem ter qualidade de vida, pretendem ser bem remuneradas, ter boas condições de trabalho. Se os hospitais privados satisfizerem essas necessidades, conseguem convencer as pessoas.
É neurocirurgião e enfrenta desafios complexos na sua actividade profissional. É duro ter que dar uma má notícia a um paciente ou faz parte do processo? Continua a ser muito duro dar uma má notícia, mas com o tempo vamos criando defesas, porque nós sofremos sempre com o sofrimento do outro. Temos neurónios no cérebro, os chamados neurónios espelho, que nos fazem sentir as emoções dos outros e compartilhar as emoções com os outros. Sentimos a dor do outro em maior ou menor magnitude. Com o tempo vamos criando estratégias para lidar com a situação. Recordo um caso, quando ainda era muito novo, em que disse a uma senhora que o marido tinha um tumor cerebral e ela imediatamente desmaiou. Foi na Urgência do São José. A partir daí percebi que é preciso ter muito cuidado na forma como falamos com as pessoas. É preciso saber dar más notícias.
Tem a consciência de que muitas vezes o vêem como uma espécie de milagreiro? Sim, as pessoas depositam nos médicos grandes esperanças e atribuem-nos poderes que nós, às vezes, não temos. Por vezes somos considerados quase um prolongamento de Deus e todos temos as nossas limitações.
Mas já deve ter tido a noção de que ajudou a salvar uma vida. Qual é a sensação? É uma sensação muito boa salvar vidas e, sobretudo, melhorar a qualidade de vida às pessoas. Às vezes é mais importante do que salvar a vida. Porque, por vezes, com as lesões cerebrais, a pessoa salva-se mas fica com uma vida sem qualidade, nem para si nem para os familiares.
O que pensa da eutanásia? De uma forma geral sou a favor da eutanásia. Há certas situações em que se pode aliviar o sofrimento da pessoa.
Do seu extenso currículo consta um doutoramento em Psicologia, com uma tese intitulada “O Efeito da Música e a Importância da Musicalidade na Dor do Pós-Operatório”. Música e medicina casam bem? A música, actualmente, é aceite como uma terapia não farmacológica em numerosas situações clínicas, designadamente na área da dor, que é a que investiguei. A minha tese de doutoramento foi muito original porque abordou a aplicação da música na dor aguda pós-operatória. Foi o maior estudo que se fez até hoje em Portugal nessa área. Outras das áreas da medicina em que a música tem sido empregue são a psiquiatria e a pediatria.
Por que razão escolheu a música para tema da sua tese? Porque na altura fazia parte da direcção do Conservatório de Música de Santarém, onde era também aluno de guitarra e fazia parte do coro. Foi uma experiência muito enriquecedora e senti na pele como a música nos faz bem à saúde. Como era preciso fazer um doutoramento para me diferenciar como professor, pois dava aulas no curso de Psicologia da Universidade Autónoma de Lisboa, escolhi a música. Os doentes utilizados nesses estudos eram de neurocirurgia e também de ortopedia, operados à coluna e membros. Foi muito compensador, porque obtivemos alguns resultados.
Também tem conhecimentos na área da psicologia. A saúde mental é um tema que está na berra. Estamos hoje mais vulneráveis psíquica e psicologicamente ou há mais atenção ao tema? Não é um tema que explore muito no meu dia a dia, mas como médico posso dizer que noto que a sociedade tem evoluído de uma forma em que a saúde mental das pessoas é muito posta em causa. A sociedade evoluiu muito em certos campos, nomeadamente o económico, mas em certos aspectos sociais está muito mais instável e vulnerável.
A pandemia também deixou sequelas a esse nível? Sim, o período da Covid também pôs a sociedade à prova, porque a ameaçou nos moldes em que funcionava. Levou a um afastamento muito grande entre as pessoas e, por outro lado, chamou a atenção para a importância das relações humanas e de estarmos juntos. Toda a medalha tem o seu reverso.
Como viveu esses tempos de reclusão forçada? Vivi relativamente bem, porque tenho um núcleo familiar mais ou menos coeso, tenho um grupo de amigos também muito bom, muito importante. Continuei a trabalhar como médico e a ajudar as pessoas, o que me deu sempre grande prazer.
A inteligência artificial já dá cartas na medicina. Como vê essa evolução? Acha que a criatura pode um dia destruir o criador? Não acredito que na prestação de cuidados de saúde a máquina substitua o homem. Não consigo aceitar essa ideia. A presença humana será sempre fundamental e foi por isso que no meu doutoramento chamei a atenção para o aspecto da humanização da medicina. Porque a medicina deve ser adaptada a cada pessoa. Nesse trabalho demonstrou-se que as pessoas que ouviam música da sua preferência tinham menos dores no pós-operatório e a preferência tem que ver com os nossos afectos, com as nossas experiências, com as nossas emoções. Há que humanizar a medicina e adaptá-la a cada indivíduo. A máquina nunca conseguirá humanizar como o homem.
A ambição de ser presidente da Câmara de Santarém
Carlos Calado tem as ambições políticas condicionadas por uma actividade profissional altamente absorvente e por uma família numerosa que não quer deixar para segundo plano, mas não esconde a ambição de um dia ser presidente da Câmara de Santarém. Embora não tenha filiação partidária, foi falado em 2021 como possível candidato do PS à presidência do município escalabitano. Acabou por ser o número dois da lista socialista à União de Freguesias da Cidade de Santarém, que venceu, e foi eleito presidente da assembleia de freguesia. Quanto às autárquicas de 2025, não levanta para já o véu sobre qual o seu grau de envolvimento. Até porque ainda não se conhece o cabeça de lista socialista à câmara.
É médico nos sistemas público e privado, é professor do ensino superior no público e no privado, é investigador, é pai de cinco filhos e em 2021 decidiu aventurar-se na política como candidato na lista do PS à União de Freguesias da Cidade de Santarém, onde é presidente da assembleia de freguesia. Ainda havia tempo para isso? O tempo é aquilo que nós queremos fazer dele. E uma paixão que tenho desde sempre é pela minha cidade, Santarém. Gostaria muito que a cidade se desenvolvesse, que ganhasse melhores padrões de qualidade de vida, que atraísse pessoas, inclusivamente para a minha área. Achei que devia, finalmente, dar um contributo para isso.
E até onde pode ir esse contributo nas próximas autárquicas? Ainda não sei qual poderá ser o meu contributo, mas gostaria muito de contribuir para uma mudança. Acho que Santarém estagnou nos últimos 20 anos. É uma cidade que precisa de um plano estratégico. O que se tem feito são obras pontuais e acho que não é assim que a cidade vai conseguir melhorar.
Gostava de integrar a lista do PS à câmara, por exemplo? Ainda não pensei nisso.
O PS ainda não tem candidato anunciado para as autárquicas de 2025 em Santarém, mas tem-se falado muito do nome de Pedro Ribeiro, actual presidente da Câmara de Almeirim. Pode ser uma boa opção? Do que conheço da sua acção como presidente da Câmara de Almeirim, penso que sim, que poderia ser um bom candidato.
O PS não está a perder demasiado tempo e a dar avanço à concorrência, ao não anunciar o seu candidato? Sim, poderá estar a perder algum tempo na medida em que já falta pouco para as eleições e já devia haver uma estratégia. O concelho precisa de uma visão estratégica global. Nunca senti que a câmara tivesse um projecto para a cidade nos últimos 20 anos.
Em 2021, o seu nome foi falado como possibilidade para ser o cabeça de lista do PS à Câmara de Santarém. Foi convidado ou equacionou essa hipótese? Sim, equacionei essa hipótese.
E não se concretizou porquê? Ia perder muito dinheiro? Não. Isso seria a conquista de uma ambição que tenho, de ser presidente da câmara. É um sonho de há muito tempo, pelo amor à minha cidade e pela visão que tenho para Santarém, que considero muito válida, nas suas diversas vertentes.
Que visão é essa? Acho que Santarém precisa muito de uma revolução em variadas áreas, uma delas é o urbanismo. Nessa área os focos iriam para a zona ribeirinha, para o centro histórico, para as vidas de circulação da cidade, que são claramente insuficientes. Santarém precisa de uma circular urbana completa e de uma via ribeirinha que seria simultaneamente escoadora do trânsito e também uma via panorâmica e turística. Santarém merecia ter uma marginal.
Deixou-me pendurado numa resposta: um 2021, não fez por avançar como candidato à câmara porquê? Teve consciência que iria perder muito dinheiro? Não foi uma questão de dinheiro, foi porque iria perder a minha carreira como médico e a minha disponibilidade para a família, a minha carreira de pai e de marido.
Então o seu tempo para ser candidato a presidente ainda não será em 2025? Em princípio não. Eu poderia gostar de ser presidente da câmara, mas gosto ainda mais de ser médico, de ser pai e de ser marido. Nesta fase da minha vida seria um grande prejuízo para essas minhas facetas, que considero as principais.
Ou seja, a concorrência dentro do PS pode ficar descansada, porque para já não vai entrar na corrida. Vou tentando participar como cidadão naquilo que posso. Como médico lido com muita gente, posso ajudar a vida de muitas pessoas, e a minha prática diária também contribui para que Santarém se desenvolva. É motivo de orgulho que por operar no Hospital CUF Santarém consiga trazer cá pessoas de Lisboa, porque estou a dar importância à minha cidade também.
É fundamental cuidar do centro histórico e da zona ribeirinha
Olha para Santarém e que cidade vê? Acho que a cidade se tem desumanizado. Os espaços públicos são cada vez mais pobres, pouco atractivos. O potencial que a cidade tem ao nível do património histórico e cultural podia ser muito mais rentabilizado.
Se fosse presidente da câmara, qual era o primeiro projecto em que se empenhava? Sem dúvida que seria fundamental uma revitalização e uma humanização do centro histórico, para o tornar atractivo, bem como a requalificação da zona ribeirinha da cidade. Frequento a zona ribeirinha, porque dois dos menores da minha casa jogam futebol na Ribeira de Santarém, e sinto uma grande mágoa por não se poder usufruir da zona ribeirinha. Isto é sentido pelas pessoas de cá e pelas de fora.
O que pensa da ligação do CNEMA à cidade, tendo em conta até que a Câmara de Santarém é a segunda maior accionista daquele parque de exposições? O CNEMA tem a sua vocação e uma cidade capital de distrito deve ter um parque de exposições e mercados. Nesse campo tenho uma boa opinião do CNEMA, porque a Feira Nacional de Agricultura continua a ser um acontecimento importante para a cidade, tal como outras feiras. Mas penso que a cidade merecia ter também um parque urbano, que não teria que ser no CNEMA. Para mim seria no Campo Infante da Câmara.
Já há um projecto nesse sentido. Ao longo da minha vida tenho vistos muitos projectos, mas nenhum foi concretizado de uma forma digna. Todos recordamos a Feira do Ribatejo antiga e a alegria que trazia à cidade. O CNEMA nunca conseguiu fazer isso. Mas os tempos mudaram, o antigo campo da feira também não reunia as condições ideais para o propósito, e Santarém merece um parque urbano maior, com mais variedade de ofertas, com um centro cultural que valorizasse a cultura local e que também contemplasse outras culturas que existem na nossa cidade.
O centro cultural também está nos planos da câmara... Está nos planos mas não existe. Eu estou a falar do que existe.
Agrada-lhe a forma como tem sido aproveitado o complexo da antiga Escola Prática de Cavalaria? Penso que foi uma das oportunidades perdidas de Santarém, como tantas outras. Seria o espaço ideal para fazer o museu da cidade. Devia reflectir a história de Santarém desde a antiguidade, a época medieval e culminar na revolução de 25 de Abril, em que Santarém também teve papel primordial. Santarém é uma cidade muito simbólica do país porque se passaram aqui coisas muito importantes. Santarém merecia um museu vivo, que contemplasse a sua história, o seu património, onde se pudesse expor o acervo arqueológico que está no museu distrital e que fosse um espaço cultural e de multiculturalidade.
Um homem de família com paixão pelo coleccionismo
Carlos Calado nasceu em Santarém no dia 14 de Dezembro de 1969. É casado pela terceira vez, tendo conhecido a actual mulher como aluna de enfermagem da Escola Superior de Saúde de Santarém, onde o médico dá aulas. Tem cinco filhos, com idades entre os 2 e os 27 anos, fruto dessas três relações.
Também é professor numa pós-graduação inovadora na Universidade Católica sobre música e medicina. E está envolvido na elaboração de um livro que destaca o papel da voz humana na prestação de cuidados de saúde, coordenado por Clara Capucho, directora do Núcleo da Voz do Hospital Egas Moniz, e por Oliveira Martins, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova.
É um homem com múltiplos afazeres e que já não tem tempo para cantar no Coro do Conservatório de Música de Santarém mas continua a alimentar a sua paixão pelo coleccionismo. Colecciona moedas, selos, autocolantes, revistas. Diz que o maior prazer da vida é estar com a família, ser pai e passar os afectos e conhecimentos para os filhos. Gosta de música e de conviver com os amigos, alguns deles que vêm desde a infância, sublinha com orgulho.