Entrevista | 15-01-2025 10:00

De calceteiro a chefe de gabinete do presidente de Almeirim: a história de um sonho que se alcança com esforço e sorte

De calceteiro a chefe de gabinete do presidente de Almeirim: a história de um sonho que se alcança com esforço e sorte
TEXTO COMPLETO DA EDIÇÃO SEMANAL
Luís Leitão é chefe de gabinete do presidente da Câmara de Almeirim mas começou por ser calceteiro

O chefe de gabinete do presidente da Câmara de Almeirim foi calceteiro na autarquia onde o pai exerceu a mesma profissão até se reformar. Luís Leitão nunca se licenciou e com o 11º ano incompleto conseguiu passar para administrativo, começar a fazer candidaturas a fundos comunitários e processos de contratação pública. Hoje é o exemplo de que a experiência vale tanto ou mais que um curso e faz questão de dizer a toda a gente que não é doutor.

Luís Leitão, chefe de gabinete do presidente da Câmara de Almeirim, é o exemplo de que o esforço, a dedicação, a disponibilidade e alguma sorte valem tanto quanto uma licenciatura. É um caso raro no panorama autárquico do país em termos de fundos comunitários. Foi quem começou a fazer as candidaturas e a acompanhar os financiamentos do município quando surgiram os primeiros fundos da União Europeia, que levaram as câmaras a contratarem profissionais com cursos superiores e a montarem gabinetes especializados. Luís Leitão, 59 anos, entrou para o município como calceteiro de quarta geração, com a humildade de quem viveu “na pré-história” das condições de vida e sem concluir o 11º de escolaridade. As mesmas habilitações que têm sido suficientes para ser ainda hoje o único responsável pelos processos dos fundos comunitários, que só na última década renderam à câmara cerca de 40 milhões de euros de financiamento.
Nasceu em casa em Casal do Paul, Almoster, concelho de Santarém. A mesma terra onde construiu com as próprias mãos e a ajuda de um pedreiro uma casa, ao longo de quatro anos, num terreno do pai e onde viveu até há três anos, quando decidiu mudar-se para Almeirim. A sua infância foi passada numa casa sem água canalizada nem electricidade. Tomava banho num alguidar, a casa de banho era um buraco no chão com paredes de canas, e lia à luz do candeeiro a petróleo. Para haver água em casa era preciso andar 200 metros até uma fonte. Andava três quilómetros a pé para ir para a escola, a mesma distância que se percorria para apanhar um autocarro para Santarém. Quando alguém estava doente ia-se à loja da aldeia telefonar para a praça de táxis de Santarém e rezava-se para que se apanhasse um taxista disposto a ir à aldeia por uma estrada de terra esburacada.
Quando deixou a Escola Industrial de Santarém foi trabalhar quatro anos para as obras. Um dia a mãe convenceu o pai, calceteiro na Câmara de Almeirim, a pedir para darem trabalho ao filho. E assim começou aos 20 anos numa profissão que já tinha sido a do bisavô, do avô e dois irmãos deste e de dois tios, irmãos do pai. Entrou ao serviço no dia 1 de Abril de 1985 a fazer passeios novos em algumas zonas da cidade. Algum tempo depois abriu um concurso para terceiro oficial, nos serviços administrativos, destinado a quem já trabalhava no município. Ficou de fora das vagas disponíveis, mas alguém terá gostado da prova que fez, baseada em legislação das autarquias locais, que passou muitas horas a estudar depois do trabalho, e chamaram-no para dar apoio administrativo à secção de obras.

Presidente disse-lhe que o martelo ficava à espera dele
O presidente da câmara de então, Alfredo Calado, já falecido, chamou-o ao gabinete e disse-lhe que o martelo e o balde ficava à espera dele se houvesse alguma falha. Entrou a medo porque para um calceteiro era mais difícil, uma vez que não tinha contacto com a realidade dos serviços da câmara. Quando começaram a existir os fundos comunitários era o único administrativo no serviço de obras e começou a fazer as candidaturas a medo. Estudou, ganhou experiência e acumulou também a contratação pública, que entretanto foi entregue a outra pessoa para lhe deixar tempo com as funções de chefe de gabinete.
Luís Leitão considera que a sua vida profissional é resultado do empenho, mas também é preciso ter sorte e estar no local certo quando as situações se proporcionam. “Esforcei-me toda a vida”, realça. Tem orgulho no facto de nenhuma inspecção feita ao município ter alguma vez mandado repor alguma situação ou apontar algum problema com as questões da contratação pública. O funcionário há quatro décadas na câmara conhecia todos os funcionários pelo nome, mas agora já lhes escapam alguns mais novos. Um dos factos que caracteriza a vida de Luís Leitão é: “sempre gostei do que faço e do que fiz” e o outro é: “Esforcei-me toda a vida”.

O telefonema para ser chefe de gabinete, os convites que recusa e o tratamento por doutor

Luís Leitão estava em Lisboa à procura de casa para o filho que ia entrar na universidade quando recebeu um telefonema do recém-eleito presidente da câmara, Pedro Ribeiro, a dizer que ele ia ser o seu chefe de gabinete. Já lá vão 12 anos e a relação de confiança mantém-se inabalável. Antes já tinha tido o reconhecimento do anterior presidente Sousa Gomes, já falecido. Ele e duas outras pessoas das câmaras de Rio Maior e Cartaxo eram as únicas que tratavam dos fundos comunitários e que não eram licenciados. Ficou então combinado, por iniciativa do antigo presidente de Almeirim, nomear os três como secretários da vereação, uma nomeação política com o objectivo de compensar financeiramente a dedicação. As outras duas câmaras ao fim de dois anos acabaram por entregar a área a pessoas com cursos superiores.
O funcionário da Câmara de Almeirim confessa que já foi convidado para trabalhar noutros locais, nomeadamente na Câmara de Santarém, mas recusou sempre e pretende recusar por uma questão de gratidão para com o município que sempre lhe reconheceu o trabalho. Quando vai a reuniões ou outras iniciativas e o tratam por doutor, faz questão de dizer que não é licenciado perante o espanto das pessoas. Até porque, diz, sente-se incomodado quando lhe chamam doutor, ou engenheiro.
A disponibilidade é um trunfo que tem. Lembra-se de uma vez em que estava num almoço de Natal com colegas e tinha a tarde livre, quando recebeu um telefonema da chefe de gabinete de Sousa Gomes a dizer que era preciso submeter uma candidatura ainda nesse dia para se aproveitar fundos que estavam disponíveis. Deixou o almoço e foi trabalhar ate à noite para fazer o processo e entregou-o. “Quem gosta de fazer, quem se esforça, atinge o sonho.
Luís Leitão voltou a pegar num martelo de calceteiro quando se mudou para a sua nova casa em Almeirim para fazer um desenho em pedra preta na calçada do pátio. Lamenta que a arte da calçada não seja valorizada e fica desanimado por ver que em muitas terras se está a deixar de usar este pavimento por falta de pessoal e por se preferirem soluções mais baratas.

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