Entrevista | 29-03-2025 21:00

A mulher que lidera a prisão em Torres Novas onde todos trabalham e ajudam a comunidade 

A mulher que lidera a prisão em Torres Novas onde todos trabalham e ajudam a comunidade 
Paula Quadros trabalha nos serviços prisionais há três décadas

Paula Quadros está há 15 anos a dirigir o Estabelecimento Prisional de Torres Novas que passou a acolher exclusivamente reclusos em regime aberto. Enquanto directora implementou um modelo único no país que prepara a saída dos prisioneiros em articulação com a comunidade local. Defende este modelo para o país e alerta para o preconceito que ainda é preciso eliminar. Aos 63 anos diz que o cargo que ocupa é uma missão e ambiciona conseguir casas de saída para os reclusos antes de o deixar.

Com um percurso de 30 anos no sector prisional, Paula Quadros passou pelo Estabelecimento Prisional (EP) de Vale de Judeus na altura em que estava a acabar o mestrado em Adaptação à Vida Prisional. Aí teve a oportunidade de conversar durante horas com cada um dos reclusos e de perceber que por trás de uma figura de agressividade se esconde geralmente um coração frágil. Licenciada em Serviço Social e Psicologia Clínica esteve seis anos no EP de Lisboa como adjunta a coordenar a unidade livre de drogas e como responsável pelos regimes abertos. Há 15 anos a dirigir o EP de Torres Novas pôde, a partir de 2020, implementar um modelo diferenciador de reinserção social que é, como diz, uma partícula no universo prisional português. Mas uma partícula que faz a diferença pela positiva ao preparar a saída dos reclusos em articulação com a comunidade local, autarquias e empresas, e que permite àqueles que estão encarcerados adquirir competências socioprofissionais que são um carimbo no passaporte para quando atingirem a liberdade e voltarem ao mercado de trabalho.
Aos poucos e mesmo batendo a muitas portas fechadas foi “acabando com a ideia de que quanto mais fechados estiverem melhor” e fez ver o contrário: “quanto mais ocupados, menos problemas dão”, já que a “ociosidade dá azo a situações de negociatas, de desavenças entre eles”. Mais de metade (51%) dos reclusos deste EP são reincidentes - “um é a oitava vez que está preso” - mas todos, ou quase todos, olham para a entrada neste estabelecimento como uma nova e verdadeira oportunidade para se recuperarem. “Querem adquirir o máximo de competências, sair daqui preparados para não voltarem ao mundo do crime”, diz.
Ser humano de convicções fortes, resiliente e humanista diz, ao fim de três décadas, que ainda acredita que vale a pena ajudar aqueles que ali chegam depois de penas longas cumpridas em EP’s centrais. Há quem lhe chame madrinha e quem, antes da liberdade, se tenha ajoelhado aos seus pés e agradecido pelos castigos mas, acima de tudo, por acreditar. “Tenho-me deparado com profissionais que acham que é uma utopia, que é um caso ou outro que atinge o sucesso”. Mas neste EP “as pessoas dentro da sua escuridão interna encontram um porto de abrigo”.


Esta é uma prisão de pequena escala onde se privilegia a integração na comunidade. Este modelo devia ser replicado? Devia. Temos indícios de que este modelo, em funcionamento há quatro anos e meio, é eficaz. Estamos com uma taxa de reincidência no crime de 11%, ou seja, dos 152 reincidiram oito, o que é muito bom comparativamente a outros países, nomeadamente os nórdicos, mais avançados neste tipo de modelos, que têm uma taxa de 20%. Temos indivíduos integrados com crimes graves e penas longas, desfasados da realidade, que ao virem para aqui adquirirem ferramentas úteis para uma integração bem-sucedida no mercado de trabalho. Apostamos no ensino, na formação profissional, nas cartas de condução, na formação exterior. Era importante este modelo ser replicado noutras zonas do país, porque embora seja bastante eficaz, é uma partícula cósmica de 30 e tal pessoas num universo prisional de 12.000 reclusos.
É o único estabelecimento prisional no país a fazer este trabalho? Representamos cerca de 20, a 25% dos regimes abertos no exterior de todo o país, mas com esta dinâmica com a comunidade somos só nós.
No caso de reincidência voltam para este EP? Não, não é possível. Começam o processo todo de novo. Aqui no estabelecimento foram revogados alguns regimes abertos, ou seja, a taxa de sucesso adaptativo ronda os 76%, o que significa que há muitos indivíduos que não vêm para aqui com aquela convicção de aproveitar este espaço, mas como um passaporte para saírem mais cedo em liberdade. O que é uma ilusão, porque não vão sair mais cedo, pelo contrário. Somos muito exigentes porque entendemos que neste regime de confiança, a tolerância é zero. Portanto, tudo o que tenha a ver com com drogas, com álcool, é taxa zero. Se alguém acusar, nem que seja dez gramas, imediatamente é-lhe suspenso o regime aberto.
Tem sido fácil encontrar parceiros para criar as brigadas de trabalho no exterior? Quando vim existia apenas um protocolo com uma autarquia. Tem sido um processo progressivo, em que vamos ganhando a confiança da comunidade. E isto deve-se, por um lado, ao trabalho deles, que é reconhecido, e também a uma articulação regular e profícua que fazemos com as entidades. Semanalmente vão dois elementos de vigilância a todas as autarquias falar com os encarregados e inteirar-se de como está a correr. O nosso pessoal de vigilância tem tido um papel preponderante no sucesso do projecto porque não são meros elementos que exercem funções de ordem no estabelecimento, mas agentes que se preocupam com o percurso dos reclusos.
Todos os reclusos merecerem ser recuperados? Nem todos os reclusos querem ser ajudados. Acredito que aqueles que querem ser ajudados e que aproveitam a oportunidade, não só merecem como têm a possibilidade de o ser. Acredito que é possível deixar alguma semente. Mas já lá vai o tempo em que acreditava que toda a gente era passível de ser reinserida.
Muito se tem falado nas casas de detenção para substituir as prisões fechadas à comunidade. O que pensa deste modelo? É por aí que devemos caminhar. Nos estabelecimentos com muita lotação é impensável um trabalho diferenciado, porque não há recursos humanos suficientes para poder acompanhar devidamente os reclusos. Por exemplo, num estabelecimento com mil e tal homens, quando há um técnico para 70 ou 100 reclusos, é impensável. Sinto muito isso quando vêm para cá dos EP centrais... chegam e o simples facto de passarem a ter um nome e deixarem de ter um número restitui-lhes a dignidade humana. Esse primeiro impacto faz com que desarmem e comecem a confiar mais no sistema. Notamos que quando chegam não estão habituados a rotinas, não têm hábitos de trabalho e ao nível da consciência crítica, têm de ser muito mais trabalhados. Chegam aqui e não conseguem sequer falar do crime. Nós temos a colaboração da psicóloga, que trabalha nesse sentido.
Há então um trabalho que é feito para que se recuperem interiormente. Sim, muito importante. Uma vez veio para cá um que só quando chegou percebeu que tinha de pagar indemnização à vítima. Não assumia o crime e não queria pagar. Voltou para trás. Portanto, eles têm de reflectir e ter a consciência do que fizeram para nos dar alguma garantia de que não vão voltar a fazê-lo. Como também têm de assumir as suas responsabilidades.
Em casos como esse, o ordenado do trabalho que se faz no exterior é também para a vítima? Normalmente quando vêm para este estabelecimento o ordenado é repartido em fundo disponível e fundo de reserva. Mas quando têm obrigações a nível judicial, é repartido mais vezes. No caso de pensão de alimentos, de indemnização às vítimas. É mais outro factor para adquirir a consciencialização. Mesmo a nível da formação externa que escolhem fazer, a carta de condução, são eles que pagam. Alguns têm dívidas às Finanças, à Segurança Social e quando vêm para cá vão à Loja do Cidadão fazer um plano de pagamento. É um modelo muito próximo da vida em liberdade, onde a única diferença é que vêm dormir ao estabelecimento, o que também se torna complicado, porque têm que integrar realidades opostas. Há quase como uma ilusão de que estão em liberdade mas quando voltam têm normas a cumprir. Ou seja, não chega serem excelentes trabalhadores lá fora se aqui dentro não cumprirem.
Estamos a falar de reclusos em fim de penas muito longas? São esses que dão mais trabalho a reintegrar? Temos uma percentagem de 82% de reclusos com penas superiores a 10 anos, mas não podemos dizer que são mais difíceis. Se quiserem mesmo mudar, isso acontece. Há indivíduos que estão há muito tempo detidos e que têm consciência de que se voltarem à sua zona de residência têm probabilidade de reincidir em crimes de roubos e assaltos à mão armada. Por isso é que alguns têm tentado mudar de vida completamente. Trazem as famílias e quando saem ficam aqui a trabalhar e viver. Estamos a falar de 10% de reclusos a viver aqui. Temos um que sabia que se voltasse ao bairro onde morava o mais provável era voltar a cometer crime e que nos pediu ajuda para trazermos para cá a família. Conseguimos arranjar creche para o bebé e escola para a criança mais velha, arrendou uma casa e, quando sair, vai ficar a trabalhar na Câmara da Golegã.
É esta a verdadeira ajuda para a reinserção? É e é feita em articulação com a comunidade. Temos conquistado o nosso lugar no tecido social. Estamos bem integrados, não só em Torres Novas, porque a nossa perspectiva de intervenção foi sempre muito aberta à comunidade. As entrevistas de trabalho com entidades externas são feitas aqui para desmistificar aquela imagem que se tem do estabelecimento prisional. Os nossos reclusos chegaram a participar em dois programas de rádio, onde faziam entrevistas e escolhiam as músicas; em teatros no exterior, com crianças institucionalizadas; em exposições de artesanato; em acções de prevenção de comportamentos de risco associados ao consumo de substâncias psicoativas junto da comunidade educativa. A comunidade habituou-se muito a não ver o estabelecimento como algo a segregar, mas algo que faz parte da rede social.
Com que autarquias têm protocolos estabelecidos? As quatro vagas que tínhamos passaram a 36 em cinco protocolos com as câmaras de Almeirim, Golegã, Torres Novas, Chamusca e Vila Nova da Barquinha. Juntou-se a Junta da Chamusca e Pinheiro Grande e vamos fazer protocolo com a Câmara do Entroncamento. Vamos chegar perto das 41 vagas em autarquias, fora empresas privadas que são quatro. À saída, muitos ficam a trabalhar.
Tem sido fácil conseguir esses parceiros? Tenho levado alguns nãos, mas sou persistente e volto à carga. Por exemplo, este protocolo com a Câmara do Entroncamento ando há 10 anos a tentar fazê-lo. Não é fácil. Tem de se sensibilizar as pessoas, sobretudo no tecido empresarial ainda há muito a fazer porque há preconceito, muitas vezes dissimulado, que não é assumido, mas que é perceptível. Falta perceber que são cidadãos que vão voltar à sociedade e, por isso, quanto mais colaborarmos e os ajudarmos, melhor para todos.

“As pessoas são mais do que os actos que praticam”

O que a trouxe para esta área? Sempre acreditei que as pessoas são mais do que os actos que praticam. Deve ser dada uma oportunidade, porque muitas vezes a vida é madrasta e muitos têm condições de vida muito duras, vêm de famílias desestruturadas, e precisam de alguém que lhes faça o confronto com a normalidade. O cargo que desempenho mais do que uma função é uma missão. Porque o faço de coração e porque acredito.
Como é que lhes traz essa normalidade? Sobretudo dando-lhes um modelo diferente de interacção, porque muitos agem na defensiva, reagem de forma agressiva, porque foi assim que foram tratados. Quando entrei no sistema, em Vale de Judeus, tive a possibilidade de estar com indivíduos que cometeram crimes gravíssimos e apercebi-me que por trás daquela agressividade há um lado muito frágil. Aqui também entram com atitudes defensivas, mas percebem que não precisam de usar essas carapaças e aprendem a respeitar-se e a respeitar a diferença.
Qual é o maior desafio enquanto directora de um estabelecimento prisional? O maior desafio é marcar alguma diferença em termos de humanidade nas pessoas e de ter o prazer de, mais tarde, reencontrá-las noutro patamar. Muito recentemente reencontrei uma dessas pessoas. Hoje tem uma empresa de reparação de calçado que já expandiu internacionalmente.
Ser mulher ajuda ou atrapalha? Acho que facilita porque eles, mesmo que tenham tido mães desestruturantes ou que não os acompanharam, idealizam a figura materna. Quando vêm falar comigo o tipo de respeito é diferente do que se fosse um homem em que há mais tendência para medir forças.
Alguma vez teve de dar um murro na mesa? Sou uma pessoa muito pacífica. Normalmente controlo as situações, e mesmo que às vezes me apeteça, acho que não é por essa via que chegamos lá. Estamos a lidar com pessoas, não com máquinas e nestas casas também é preciso ter jogo de cintura e postura. Encontrar o ponto de equilíbrio para lidar com o universo prisional e com os serviços de vigilância.
O que lhe falta fazer antes de deixar estas funções? Um projecto que tenho em curso já há alguns anos, mas que infelizmente, por questões burocráticas, tem sido difícil concretizar: a implementação de casas de saída do estabelecimento prisional. Existem duas em Torres Novas, fechadas há 11 anos, que eram de antigos magistrados. Estão impecáveis, fizemos orçamento de 1.500 euros para obras. No ano passado passaram do Ministério da Justiça para a Câmara de Torres Novas e agora falta fazermos o acordo e regulamento de funcionamento. Iriam permitir acolher oito pessoas até reestruturarem a vida, o que era excelente, porque há muitos que saem sem apoio familiar.

Paula Quadros dirige há 15 anos o Estabelecimento Prisional de Torres Novas

Reclusos ajudam a alimentar 175 famílias carenciadas

O projecto pioneiro “Horticultura vertical, solidariedade horizontal” aqui desenvolvido foi merecedor de distinção internacional. Já foi replicado nalguma prisão? Foi reconhecido também no ano passado, na reunião do Conselho das Nações Unidas com uma menção honrosa às boas práticas. Vai começar agora a ser replicado no EP Leiria Jovens. Não será exactamente igual, porque penso que não terá a vertente de solidariedade social, da qual nós não abdicamos e que tem sido muito positiva para os reclusos, porque sentem que é uma forma de devolver à comunidade tudo aquilo que a comunidade tem feito por eles.
Quantas famílias estão a ajudar com os produtos produzidos nesta horta? Estamos a ajudar 175 famílias, ao todo são 400 pessoas a beneficiar desta ajuda mensal. Já distribuímos três toneladas de produtos hortícolas gratuitamente.
Quantos reclusos tem este EP? Neste momento 38, dos quais 31 em regime aberto, a trabalhar no exterior, um que está cá dentro porque não pode trabalhar de momento e seis em regime aberto no interior. Todos são escalados para limpar o estabelecimento e ajudar na cozinha.
Aqui aprendem a gerir o seu dinheiro? Há muitos que saem daqui com milhares de euros juntos. Ganham o ordenado mínimo e se forem poupados conseguem. Não permito que mexam na reserva a não ser para despesas válidas como fazer formações, ou para irem ao dentista, por exemplo. Muitos querem melhorar a imagem e vão arranjar os dentes. Se forem a casa só permito que levem no máximo 40 euros por dia. O intuito é saírem daqui com um fundo de maneio.
Para poderem começar uma vida lá fora. Para poderem arrendar uma casa, recomeçar. 33% dos reclusos saem daqui com trabalho. E isso acontece porque temos uma excelente articulação com o Centro de Emprego. Articulamos as licenças saídas para irem a entrevistas de emprego agendadas, ou seja, saem daqui encaminhados. Se não fosse assim seria muito difícil, porque têm muitos anos de pena e um hiato no currículo.
Dá a cara por todos? Só apostamos naqueles que vemos que dão garantias e que têm feito um percurso positivo aqui dentro. Sobre os que tenho dúvidas não quer dizer que não os ajude ou não lhes dê as competências necessárias.
Tem de os conhecer muito bem... E conheço. Acho que entendem que quando os estou a chamar à atenção é uma forma de me preocupar. E quando transgridem, a primeira preocupação deles não é tanto o perderem as oportunidades, mas terem-me decepcionado porque sabem que apostei neles, que lhes disse as regras do jogo e que não foram capazes de as cumprir. Ainda ontem saíram daqui três com o regime aberto ao exterior revogado. Revogámos ao todo 39 RAE’s de 152, o que equivale a 25%. Estar à vontade não é à vontadinha. Prefiro indivíduos que venham para aqui conscientes do que vêm fazer. É um pouco uma triagem antes da saída.

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