Entrevista | 20-04-2025 10:00

A senhora das actas despede-se após quatro décadas ao serviço da Câmara de Benavente

A senhora das actas despede-se após quatro décadas ao serviço da Câmara de Benavente
Anabela Gonçalves esteve no serviço de águas do município, passou para a secção de pessoal e era responsável pelas actas. Reformou-se depois de 43 anos na administração autárquica

Anabela Rodrigues Gonçalves era um dos rostos das reuniões de câmara de Benavente, onde lidou com dezenas de autarcas de várias gerações e viu e ouviu muita coisa . Nos bastidores redigia as actas que relatavam o que executivo discutia e aprovava em cada sessão. Dedicou mais de quatro décadas ao serviço da administração autárquica e sai com o sentimento de dever cumprido.

Olhando para a sua trajectória na Câmara de Benavente, qual considera ter sido o maior desafio ao longo dos anos? Talvez quando a então directora de departamento, Eugénia Correia Neves, veio para a Câmara Municipal de Benavente e criou a secção de pessoal, que não existia. Fiquei responsável pelo serviço e foi um desafio superado, tendo-o mantido até o nascimento da minha filha mais nova. Foram sensivelmente cinco anos e já depois do primeiro serviço que tive, no sector de águas do município. Com a criação da secção de pessoal, e depois da minha filha mais nova nascer, ainda estive um ano em Benavente, mas já havia a extensão de serviços em Samora Correia. No sentido de acompanhar o crescimento da bebé, pedi ao presidente António José Ganhão para ficar em Samora Correia, onde permaneci 15 anos.
Há algum episódio ou reunião de câmara que tenha ficado especialmente marcado na sua memória? Ficou essencialmente a primeira reunião, não sei precisar o ano, mas foi no primeiro mandato. Até então as actas eram aquilo que a própria lei diz, ou seja, um resumo daquilo que de essencial se passa. E as actas, se houvesse alterações, eram introduzidas na acta seguinte. Dois vereadores, na altura, achavam que o discurso deles tinha que ficar todo na acta e que as correcções deveriam ser feitas logo na própria acta. Isto porquê? Porque eles achavam que quem lesse a acta podia não ler a seguinte. Curiosamente no final dessa primeira reunião, um dos vereadores falou, falou e falou... mais de uma hora, só ele. No final da reunião cruzei-me com o já então presidente Carlos Coutinho e adverti-o para ter cuidado, porque a legislação diz que o período antes da ordem do dia tem uma duração máxima de uma hora para todos. Só esse vereador tinha utilizado todo esse tempo. O presidente sorriu e disse para não ligar, porque tinha sido só naquele dia. Mas não foi. Em determinada altura, quando o presidente tentou realmente que se cumprisse a lei, o vereador acusou-o de fugir ao debate político.
Elaborar actas de reuniões exige atenção ao detalhe e imparcialidade. Alguma vez sentiu que uma acta poderia influenciar decisões futuras? Na verdade, nunca senti. Gostava muito do serviço. Começou logo no meu regresso a Benavente quando substituí a colega Paula Reis, funcionária que já está aposentada e que fazia as actas. Foi o director de departamento, a quem estava a dar apoio administrativo, que me convidou para redigir as actas. Assim fiquei até ao último dia de trabalho, 4 de Abril.
Como viu a evolução da administração pública ao longo dos anos? O que mudou para melhor e o que gostaria que fosse diferente? Em relação à Câmara de Benavente em concreto, o que mudou muito e para pior foi o facto de terem retirado às autarquias a possibilidade de fazerem as obras por administração directa. Quer sejam as obras, quer seja o serviço de higiene e limpeza, por exemplo. Muito sinceramente, qualquer um destes serviços piorou desde que a câmara deixou de ter essa possibilidade. O serviço não fica bem feito e não tem a mesma qualidade de quando eram os nossos trabalhadores a fazê-lo, sem dúvida.
Esteve 43 anos ao serviço do município. Nada mais houve, para além do que referiu, que pudesse acontecer de outra forma? Gostava de ver, essencialmente, entre os colegas o mesmo grau de camaradagem e de entreajuda que havia quando entrei para a câmara. O ambiente já não é exactamente aquele que era. Hoje em dia há muito a afirmação de que não faço determinada tarefa porque isso não é da minha área ou da minha responsabilidade. Há uns anos não era assim e a pessoa interessava-se. Recordo-me, por exemplo, de quando estava no serviço de águas, nem sempre ter trabalho para fazer e perguntava ao presidente se não se importava que eu fosse à secção de obras particulares, que era pertíssimo, para ajudar em alguma coisa que fosse necessário. Hoje não se vê nada disso.
A reforma é, para muitos, um momento de libertação e de recomeço. Como encara esta nova fase? Tem planos específicos para ocupar o tempo? Para já, nos próximos meses, vou cuidar da neta de cinco meses. Como todos sabemos, não há vagas nas creches. Ela já está inscrita na Fundação Padre Tobias, mas já foi dito que antes de completar o primeiro ano de vida que não tem vaga com toda a certeza, portanto, a minha prioridade agora é essa. Para além disso, vou manter as minhas aulas de zumba e a minha presença no Coro Municipal. Quando a neta for para a creche ou para a pré-primária pretendo retomar as aulas de hidroginástica, que já cheguei a fazer em tempo, e teatro. Vou manter-me activa, sem dúvida.
Ainda no calor do último dia de trabalho, o que sentiu? Julga ter deixado a sua marca de alguma forma? Senti reconhecimento de pessoas que não estava à espera. Foram despedidas muito emotivas. Quanto ao trabalho, sim, deixo uma marca. Aliás, o presidente fez questão de ir despedir-se de mim ao gabinete e realçou precisamente isso, que deixava uma marca. Também a chefe de divisão, Palmira Machado, disse o mesmo. Portanto, tenho consciência que saio com o sentimento de dever cumprido.

“As próximas eleições autárquicas vão ser muito duras”

Durante todos estes anos, teve de lidar com personalidades e estilos de governação diferentes. Foram dois os presidentes de câmara com quem lidou - António José Ganhão e Carlos Coutinho. O que retém de cada um deles? Sem retirar valor ao trabalho que o presidente Carlos Coutinho tem feito ao longo dos anos, penso que o presidente António José Ganhão deixou uma grande marca, uma grande herança que é difícil qualquer um superar. Sei também que tenho o reconhecimento e a amizade de quase praticamente todos os vereadores da oposição que passaram pela câmara. O porquê? Talvez pela minha forma de estar.
Como julga que vai ser também o futuro da câmara? Não faço ideia, mas há muitas incertezas. Oxalá me engane, mas estou em crer que nenhuma força política vai vencer com maioria absoluta. Vai ser necessário encontrar consensos entre os partidos da esquerda e da direita. Pode ser que me engane, mas estas próximas eleições autárquicas vão ser muito duras e mais divididas.
O que mais a orgulha do seu percurso profissional? O que mais me orgulha é ter deixado amizade em todos os sectores. Isso ficou patente no último dia de trabalho. Não há ninguém que diga que tivemos determinado desentendimento ou um não gosto de ti.
Se pudesse definir a Câmara de Benavente em três palavras, quais seriam? Enquanto instituição tenho muito orgulho de ter feito parte dela, de ter ajudado a construir um projecto que, na altura, estava praticamente no início, porque quando entrei na câmara municipal, no dia 1 de Março de 1982, o presidente António José Ganhão estava no primeiro mandato. Marcou-me muito a última reunião do seu mandato, em que o presidente se virou para mim e perguntou-me se já tinha pensado em escrever um livro. Depois, a propósito da redacção das actas, o vereador Ricardo Oliveira disse que Anabela há só uma. Foram dois momentos que me marcaram bastante pelo reconhecimento do meu trabalho.

43 anos de serviço sem perder o fio à meada

Anabela Rodrigues Gonçalves entrou ao serviço na Câmara de Benavente no dia 1 de Março de 1982, ainda na gestão do então presidente António José Ganhão que estava no primeiro mandato. Mais de quatro décadas depois reformou-se e despediu-se, no dia 4 de Abril, da casa onde fez carreira. Trabalho e compromisso são as duas palavras com que define a sua carreira e se tivesse de escolher o título da última acta para retratar o seu percurso, seria “caminho de orgulho”.
É conhecida por não perder o fio à meada, e talvez seja essa a melhor metáfora para descrever os 43 anos de serviço ao município onde fez carreira. Aos 66 anos, esta lisboeta nascida na freguesia do Socorro foi, desde 1982, coordenadora técnica e foi responsável pela Subunidade Orgânica de Actas e Apoio aos Órgãos Autárquicos. A sua ligação ao serviço público começou cedo e firmou-se para toda a vida. Ainda assim, o sonho original era outro: ser advogada. Tentou o caminho académico, fez o antigo 7.º ano (hoje 11.º ano de escolaridade) e o ano propedêutico — que não lhe permitiu a entrada na universidade. Hoje, sem mágoas, é a filha mais nova quem leva esse sonho por diante.
A infância, vivida entre ausências marcantes e um colégio em Peniche, não lhe deixou boas memórias. A mãe, que não conhece, saiu de casa quando Anabela tinha apenas oito meses; o pai emigrou para os Estados Unidos quando ela tinha 11 anos. Criada por uma tia da madrasta, foi moldada pela resiliência e por um sentido de justiça que ainda a comove quando fala de maus-tratos infantis ou da crueldade das guerras. Diz que a amizade é a sua qualidade e acreditar em demasia um defeito.
Em Samora Correia encontrou o seu refúgio, depois de também ter morado em Foros de Salvaterra. “Se não morasse aqui, talvez vivesse em Santo Estêvão”, diz, com a certeza de quem conhece os encantos da paisagem e da serenidade. A sua vida podia ter dado um livro — policial ou histórico, como os que tanto aprecia. Mas foi na câmara que se escreveu, página a página, o longo capítulo da sua vida profissional.

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