Entrevista | 09-07-2025 15:00

Eduardo Pires: “esconder o aterro de Mato da Cruz em Arcena foi um golpe de génio” 

Eduardo Pires: “esconder o aterro de Mato da Cruz em Arcena foi um golpe de génio” 
Eduardo Pires vive em Arcena e foi o fundador da UDP, partido que deu depois lugar ao Bloco de Esquerda - foto O MIRANTE

Eduardo Pires é um dos 200 rostos nacionais que contribuíram para a revolução do 25 de Abril. Foi o histórico fundador da UDP (que deu lugar ao Bloco de Esquerda), tendo fundado também o Partido Comunista (Reconstruído), de que foi primeiro secretário. Esteve sempre na primeira linha das críticas ao revisionismo e ao social-fascismo do partido de Álvaro Cunhal e hoje fica triste por ver o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português quase ligados às máquinas para sobreviver politicamente.

Nesta entrevista a O MIRANTE, Eduardo Pires recorda algumas das suas histórias e momentos da vida – como o célebre desfile à força por entre os fuzileiros na Lisnave, onde foi presidente da comissão de trabalhadores, até à terra onde vive, Arcena, em Alverca, e dos problemas que o aterro sanitário tem causado aos moradores. Continua a assumir-se como um comunista de alma e coração, e quer acreditar que a humanidade ainda tem um pingo de bondade no sangue. Ou não tivesse ele nascido a 28 de Novembro, o mesmo dia que Friedrich Engels.

Entrou no Instituto Superior Técnico (IST) com 19 anos e só 30 anos depois concluiu o curso. O que aconteceu? Entrei no curso de engenharia mecânica e depois fiz o ramo da termodinâmica aplicada, mas em 1973 tive de interromper os estudos quando, ao sair de casa para ir trabalhar na Lisnave, fui abordado por agentes da polícia política (PIDE) e preso. Fui acusado de manter actividades contra o Estado.
Confessou as suas ligações com os movimentos comunistas? Nunca. Trataram-me de forma modesta (risos), passei quatro dias e cinco noites de tortura do sono e um dia de estátua. Apenas para confirmar que mantinha actividades contra o Estado. Muitos dos que me torturaram acabaram presos após o 25 de Abril.
Alguma vez se cruzou com os seus carcereiros? Não, nunca mais os voltei a ver. Mas sempre disse para mim mesmo que a PIDE não era o país. Arrepio-me imenso hoje quando vejo estes novos fenómenos nacionalistas a surgir.
O que correu mal para esses fenómenos nacionalistas terem regressado? Há causas gerais e causas concretas. O Chega não é idêntico ao partido da francesa Le Pen. Uma das causas para isto acontecer são as desigualdades. Isso tem consequências. Estivemos 48 anos numa apatia extraordinária antes do 25 de Abril. Na altura tínhamos cinco mil igrejas em todo o país onde todos os domingos grande parte da população ficava a ouvir o padre a espalhar a palavra anti-comunista e a dar o exemplo do milagre de Fátima. Hoje estes partidos não precisam das igrejas, fazem isso com as redes sociais. No fascismo, com os instrumentos da igreja e das escolas ao serviço do Estado, conseguiam que a exploração fosse a mais intensa possível. No início do século não tínhamos grandes capitalistas, mas foi nesse período do fascismo que alguns fizeram crescer as suas fortunas.
A seguir ao 25 de Abril tornou-se coordenador da comissão de trabalhadores da Lisnave. Conte-nos a histórica manifestação da Lisnave em Setembro de 1974. É considerada, juntamente com o 7 de Fevereiro, uma das manifestações que melhor definiram a situação revolucionária. O governo tinha uma certa autoridade do MFA e do 25 de Abril nessa altura e dois ministros sem pasta, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Houve três meses de fermentação da luta operária na Lisnave até Agosto quando o governo foi substituído pelo segundo governo provisório do Vasco Gonçalves. Quando tentámos avançar com a manifestação da Lisnave contra as leis anti-operárias que limitavam o movimento grevista em Portugal, disseram-nos que era proibido. Mandaram os fuzileiros cercar a fábrica. Quando subi a um palanque e perguntei se os manifestantes queriam sair levantaram-se sete mil braços à minha frente. Saímos contra um cerco de fuzileiros. Foi assustador. Podia ter sido uma tragédia. Levantámos as cancelas, todos de fato macaco e uma disciplina militar a desfilar. Sete mil trabalhadores em filas de sete, uma imagem extraordinária. Os soldados emocionaram-se, baixaram as armas, começaram a chorar, a manifestação foi andando até aos cacilheiros e ocupámos os barcos.
Tudo podia ter acontecido. Os patrões fugiam em 1974, havia fábricas sem patrões. Os de cima já não governavam como antes e os de baixo já não queriam ser governados. Acabou por acontecer o 25 de Novembro. Em 1975 nas eleições para a constituinte o PS, PSD e CDS tiveram quase 80% da votação. Sei que o PCP na altura sonhava ter uma votação acima de 25% e tiveram menos de 19%. Quem foi a correr dar os resultados ao Cunhal foi com as lágrimas na cara...
Já não acredita nos amanhãs que cantam? Não há esperança para lutar por um mundo justo, sem opressão nem guerras? Não é nossa obrigação lutar por uma sociedade harmoniosa em que não haja explorados nem exploradores?
Com a queda do muro de Berlim o PCR fez uma coligação com o PCP, que foi o início do fim... Critiquei muito o Cunhal em vários momentos mas nessa altura, nas várias discussões que tivemos com o Cunhal, ele derrotou-nos (risos).
Como vê o estado de coisas do BE e PCP? Estão ligados às máquinas para não morrerem? O BE está numa posição política muito difícil e complicada. O PCP é mais coerente. Mesmo assim nunca vi um partido da esquerda revolucionária apoiar orçamentos de guerra. Não posso suportar uma posição dessas e revolto-me. São precisos movimentos populares e partidos políticos que impeçam a proliferação das forças de extrema direita.
Conhece os protagonistas da CDU e BE no concelho de VFX? Não sei se são protagonistas (risos). Havia pessoas com qualidade razoável no concelho. Durante muitos anos acompanhei a política local e ia a todas as assembleias municipais. Depois o meu interesse passou para a Baixa da Banheira, de onde sou natural, e o concelho da Moita.

“Decisão de instalar o aterro em Arcena condenou a população por centenas de anos”

Eduardo Pires realizou um estudo de mestrado para o Instituto Superior Técnico sobre a produção de energia anaeróbica do aterro sanitário de Mato da Cruz, em Arcena, explorado pela Valorsul, muito focado no aproveitamento do biogás ali produzido pelo acumular dos resíduos. Entre as considerações do documento, está o facto do aterro ter gerado revolta nos moradores da comunidade de Arcena, estar a acumular o lixo de um milhão e meio de pessoas da Área Metropolitana de Lisboa e de apenas 30% do biogás do aterro ter sido aproveitado, com o restante queimado nas instalações. Considerou Eduardo Pires que a urgência de construir a Expo’98 levou à escolha apressada do local, com o aterro a colocar problemas sociais e de saúde pública às populações. Um espaço “colossal e trágico” onde hoje quem vive na localidade ainda tem de pagar a factura.

Mato da Cruz foi o melhor local para colocar um aterro que substituísse o aterro de Beirolas? Em 1997 fomos afectados pela decisão de trazer o aterro para a fronteira entre Loures e VFX. Para junto de uma população. Ao decidirem como decidiram afectaram toda uma população durante dezenas e dezenas de anos. Lisboa estava à beira do colapso com os resíduos e foi preciso fechar Beirolas, que era o principal aterro de resíduos de Lisboa. Em 1997 Loures já tinha feito um acordo com VFX para fazer aqui o aterro porque já havia uma lixeira a céu aberto na Calhandriz e a Expo 98 tinha de avançar. Apesar de tudo este aterro foi o primeiro a ser feito tendo por base premissas científicas. Ele foi bem organizado, o problema é que fizeram tudo sem perceber que dali a três ou quatro anos estariam a produzir gás com elevado poder calorífico sem o poderem canalizar para indústria ou aquecimento de uma piscina municipal. Um gás que era necessário rentabilizar eles limitaram-se a queimá-lo.
Ninguém gosta de ter um aterro à sua porta. Eu vivo 50 metros abaixo do aterro e não concordei quando se soube que o iam fazer ali. Na altura fomos uns quantos moradores à assembleia municipal e levei uma série de frascos cheios de lixiviados do aterro que apanhei na ribeira. Protestámos sempre, mas esconder este aterro no cruzamento de Loures e VFX para a malta não dar muito por ele, foi um golpe de génio à dona de casa. Ou seja, quando tem muito trabalho, manda o lixo para baixo do tapete.
O problema dos aterros é que há sempre alguém que sai prejudicado... A ideia de alargarem o aterro através da expansão da pedreira da Cimpor, há uns anos, teria sido um problema ainda mais grave para toda a sociedade. Passei oito dias a estudar a declaração de impacto ambiental desse projecto na câmara de VFX. Ia lá duas horas por dia para me apetrechar da informação que depois fiz chegar à presidente da câmara na altura, a Maria da Luz Rosinha.
Mas entretanto a expansão da pedreira não avançou. Mesmo não tendo os rebentamentos que estavam previstos não sabemos até que ponto é que não há vibrações maiores do que o habitual. A estrutura ainda não está suficientemente consolidada. Na pedreira queriam fazer rebentamentos junto a uma estrutura que tem para lá de 8 mil toneladas de resíduos...
Trocou opiniões com a Rosinha sobre o aterro? Claro, e sobre a pedreira também. Ela é uma pessoa inteligente e na altura certamente leu a minha exposição sobre a expansão do aterro. Quando apresentámos o problema da pedreira ela rapidamente viu ali uma solução para poder exigir contrapartidas. Ela sempre funcionou de forma inteligente com isto, por um lado secundarizava a nossa opinião para obter contrapartidas para o concelho. Veja-se o pavilhão da casa do povo e as piscinas da calhandriz, que foram contrapartidas pela construção do aterro.
Está satisfeito com a gestão que a Valorsul tem feito daquele equipamento? A gestão da empresa é para dar lucro, por isso alguma coisa tem de ficar para trás.
Por exemplo? Todos os anos a central da Bobadela tem de parar para manutenção e os resíduos têm de vir para o aterro em bruto. As pessoas de Arcena habituaram-se às coisas más e as consequências são quase imperceptíveis, mas com o tempo massacram sem darmos por isso. Vamos sofrendo sem dar conta. Só 30% do gás é aproveitado porque a maioria escapa pela terra para a atmosfera. Esse problema em cima de uma cidade que tem crescido e aumentado muito a sua população, é doloroso. Podem dizer que o risco é pequeno e ínfimo, há sempre justificações para tudo, mas a verdade é que o ar que respiramos hoje não é tão bom como antigamente, antes do aterro.
Lembra-se da ribeira de Arcena ainda ter água limpa antes do aterro? Claro. Houve muita gente que se dedicou a este problema. Hoje as escórias que vêm da central da Bobadela são altamente perigosas, com chumbo, mercúrio, muitos metais pesados.
Desde 2015 que há promessas de encerrar o aterro. A licença ambiental está válida até 2026. Acredita que vai fechar para o ano? Não. Chegaram a falar num projecto de reconversão para as células que foram sendo encerradas, como um jardim de usufruto público para a comunidade. Isso já devia ter sido feito em 2022, mas nada avançou. Como é possível aquilo ainda estar a funcionar? Quando foi criado o projecto inicial já era calamitoso porque não atendia a todas as necessidades. O aterro teve rupturas que contaminaram todos os poços artesianos que ali existiam na serra de Arcena. Mandámos investigar as águas que estavam nesses poços e estavam todas contaminadas. Isso leva-nos a crer que este adiamento sucessivo é para os lucros da empresa não descerem e aumentarem. Para se cuidar da saúde das pessoas é preciso fazer despesa. Quem sofre são os moradores.
Apesar disso gosta de viver em Arcena? Gosto porque tenho uma vista extraordinária. Do cimo do aterro tem-se a vista mais bela de qualquer estuário de toda a Europa. Mas temos problemas por resolver. A limpeza e tratamento das ruas, ervas por todo o lado, buracos... Há ruas em Arcena que qualquer dia nem a pé se consegue andar com tantos buracos e ervas por todo o lado. Não há um tratamento regular.
Como vê o concelho de VFX? Tem qualidade de vida? VFX era uma vila com uma população com capacidade de reivindicação e de luta pelo seu bem-estar. Incluindo algumas lutas importantes na história do país, dentro das fábricas. Hoje já não é assim. Embora a terra onde vivemos seja sempre especial para nós, criamos laços com toda a gente.

Eduardo Pires estudou o Aterro de Mato da Cruz um espaço que classifica de “colossal e trágico” com prejuízo para a população - foto O MIRANTE

Deviam ser proibidos todos os aeroportos na área de Lisboa

Eduardo Pires nasceu na Baixa da Banheira e tem 78 anos. Entrou no IST mas acabou preso pela PIDE nunca tendo concluído o curso. Regressou à Baixa da Banheira e envolveu-se na actividade cultural, no ensino para operários no Ginásio Atlético Clube e no movimento de oposição democrática. Em finais de 1972 ingressou nos estaleiros da Lisnave, enquanto monitor da sua escola profissional. Juntamente com o Padre Albino Lopes, operário electricista na CUF, e José Manuel Caiado Galego, fundou um centro da oposição onde passou a viver. Essa república funcionou como escola alternativa e centro de discussão e elaboração de teses para o Congresso da Oposição Democrática em Aveiro em Abril 1973. Trabalhou em fábricas e empresas no Seixal, Palmela e Coina. Pertenceu à comissão promotora para a legalização da União Democrática Popular. No 1º Congresso foi eleito para a sua Comissão Política.
Na UDP fez parte da Comissão Central e Conselho Nacional, entre 1975 e 1980. Só com a passagem do PCR a associação política, voltou a ocupar um lugar na direção da UDP, em 1992, desta vez, no Secretariado Permanente. “Na altura quando foi a formação do BE não concordei com a formação daquela forma porque iria levar ao desaparecimento político da UDP. O BE transformou-se num médio partido e nesse quadro a UDP iria desaparecer. Saí da direcção e fui colocado em VFX a trabalhar politicamente”, recorda.
Foi candidato da UDP à Câmara de Vila Franca de Xira no primeiro mandato de Maria da Luz Rosinha, mas não conseguiu ser eleito. Passados 26 anos da suspensão dos estudos, regressou ao IST para, em 2005, defender a sua tese final de curso em Termodinâmica Aplicada, com o primeiro estudo, feito em Portugal, sobre a produção de energia anaeróbica no aterro de Mato da Cruz. Defendeu, em várias publicações, que se está perante uma derrota do socialismo mundial, mas não de uma derrota final, considerando que a transformação socialista não pode ser regida pelo estádio onde se pretende chegar, tem de se atender ao estado de consciência e às necessidades das massas. Tem o sonho de estudar as razões para a queda dos ideais socialistas. “A crise que existe neste movimento é filosófica e política, requer pensamento, reflexão e estudo do que se está a passar no mundo”, defende. A sua cor favorita é o vermelho e tira-o do sério a hipocrisia e a ingratidão. Adora praia e montanha e o livro da sua vida é “A Mãe” de Máximo Gorki e tem uma paixão por Balzac.
Se almoçasse com Fernando Paulo Ferreira, o presidente da câmara de VFX, gostava de discutir os problemas sensíveis do concelho. “As autarquias têm muita importância a nível nacional. Têm de ter uma influência reivindicativa”, defende. Quando questionado sobre um novo aeroporto em Alverca a resposta é directa: “Absolutamente não. Deviam ser proibidos todos os aeroportos na área de Lisboa”, defende. E sobre a invasão de turistas no país é peremptório: “Se o desenvolvimento futuro do país for o turismo estamos perdidos. A carestia das coisas não é um problema dos imigrantes, é dos que fazem turismo e vêm para cá. Há hoje uma grande luta em vários países europeus contra a utilização do turismo como indústria que vai prejudicar o desenvolvimento harmonioso das cidades”, critica.

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