Escritor e editor Luíz Pacheco em O MIRANTE no centenário do seu nascimento

Luíz Pacheco foi, provavelmente, o único escritor português maldito destes últimos cem anos. A sua Obra não é grande mas merece cada vez mais reedições. Os seus livros estão esgotados e até nos alfarrabistas há poucos e custam centenas de euros. Nos últimos anos saíram várias biografias sobre a sua vida e a sua Obra, o que não é comum em Portugal. Quem vive entre escritores e editores é raro não ter uma história para contar vivida com Luís Pacheco. O escritor e editor fica para sempre conhecido pela sua obra polêmica e irreverente, além de sua vida conturbada e marginalizada. Fundador da editora Contraponto, publicou autores como Mário Cesariny, Natália Correia e Herberto Helder, só para falarmos dos mais antigos e prestigiados, e foi um crítico feroz da intelectualidade portuguesa e do regime salazarista. O MIRANTE recupera duas das entrevistas que foram publicadas na edição impressa. A primeira saiu na edição em Dezembro de 1999 e a segunda em Junho de 2000. O poeta José do Carmo Francisco foi o autor das duas conversas e dos textos de introdução das entrevistas, que agora publicamos ainda a tempo de homenagear Luíz Pacheco no ano do seu centenário de nascimento.
Luíz Pacheco o escritor "maldito" que guarda boas memórias de Santarém.
"O Herberto leu-me "Os passos em volta" nas Portas do Sol”
Acaba de publicar "Exercícios de Estilo" na Editorial Estampa. Chama-se Luiz Pacheco e nasceu em Lisboa em 7 de Maio de 1925. Estudou no Liceu Camões ao lado de José Cardoso Pires, Jaime Salazar Sampaio e José Manuel Alenquer. Foi aluno de António Gedeão, Câmara Reys, João de Brito e Duarte Frazão. Foi o primeiro editor de José Cardoso Pires num jornalzinho do Liceu; publicou-lhe o conto "Aventuras do Mosquito ZigZag"e pagou-lhe 5 tostões de direitos de autor. É considerado por muitos como um "escritor maldito" talvez o único escritor maldito na nossa actualidade literária. Com uma vida acidentada de autor (ficção, ensaio, memórias) e editor (Editora "Contraponto") Luiz Pacheco retirou-se há dois anos para uma Casa de Repouso em Palmela. Foi lá, entre o cemitério e o castelo, que O MIRANTE o foi descobrir no seu repouso de guerreiro. Afinal retirado mas não inactivo, Luiz Pacheco montou uma pequena Editora no seu quarto e, utilizando um ficheiro muito especial constituído por postais ordenados por um número de código (O MIRANTE é o 186), lá vai publicando e paulatinamente enviando os seus livros aos fiéis assinantes. O seu mais recente trabalho na Editora Contraponto chama-se "Prazo de Validade" (dele falaremos mais tarde) mas o motivo imediato da nossa conversa foi uma edição recentíssima de um trabalho de 1971 ("Exercícios de estilo") numa edição devidamente revista e aumentada. Foi uma conversa franca e não estranhe o leitor o à-vontade do diálogo: o repórter de O MIRANTE conhece Luiz Pacheco desde 1966
UM STAND A ARDER NA FEIRA DO RIBATEJO...
O MIRANTE-Como é que surge esta edição dos "Exercícios de Estilo"?
LUIZ PACHECO - Depois das primeiras de 1971 e 1973 esta é especial porque inclui textos como "O caso das criancinhas desaparecidas", "Um conto por um conto" e "O libertino" que não faziam parte da primeira versão.
P- Quantos textos novos são ao todo?
R- São mais onze. E além disso aparece um trabalho, um prefácio da Ana da Silva e uma cronologia actualizada até 1998 também da Ana da Silva que é professora lá em Santarém.
P- A propósito. Reparámos que estás muito ligado a Santarém e que inclusivé editaste lá um trabalho do Herberto Hélder. Como foi?
R- Isso foi nos idos de 1958 e 1961. Eu ia muito a Santarém porque havia lá um grupo de malta ligada aos livros. Eu vivia nas Caldas da Rainha e arranjava boleias para aparecer por lá.
P-Que grupo era esse?
R- O Herberto Hélder, o António José Forte, o Barros, o Neves que era ajudante de notário, o Oliveira que trabalhava numa livraria de Santarém. Esse tem uma história muito curiosa...
P- Conta lá...
R- Foi o caso de esse Oliveira ter um stand na Feira do Ribatejo com a livralhada. Houve um fogo e aquilo ardeu tudo. Com o dinheiro do seguro ele montou uma pequena Editora.
P- Como se chama a Editora?
R- É a Antígona.
ESTAR NAS PORTAS DO SOL E OUVIR O HERBERTO HÉLDER...
P- E sobre as edições do Herberto Hélder como é que aconteceram?
R-Em 1958 "O amor em visita" foi congeminado em Santarém mas feito em Lisboa, mas era 1961 o "Poemacto" foi mesmo editado era Santarém. Tem uma explicação. A tipografia fiou-me porque o conhecia das bibliotecas da Gulbenkian. Publiquei outra coisas em Santarém, mais tarde.
P-O que é que foi?
R- Um panfleto pago pelo António José Forte. Chama-se "O cachecol do artista". Foi em 1965.
P- Que memórias guardas da Santarém desses tempos?
R- Olha coisas bonitas como por exemplo estar nas Portas do Sol e ouvir o Herberto Hélder dizer em voz alta só para mim os textos de "Os passos em volta". Foi um choque. Outra história é que quando estava apertado de dinheiro levava livralhada de Santarém para as Caldas da Rainha e vendia à malta amiga nos cafés e não só.
P-Continuas ligado a Santarém?
R- Sim. A Ana da Silva está a dar aulas na Escola Superior de Educação de Santarém e vive na Marmeleira. Foi ela que fez a cronologia que vem no fim deste livro e a nota de apresentação. Outro dia fui visitá-la mas de uma maneira muito inesperada, mesmo muito inesperada.
P-Conta lá essa viagem!
R-Foi no Domingo Gordo e havia aqui no Lar uma brincadeira de Carnaval com a velharia, mas eu aborreço-me com as coisas programadas, Natal, Carnaval, isso tudo. Desandei daqui e fui até Setúbal. Lá apanhei um expresso para Santarém. Quando cheguei à Rodoviária percebi que não havia camionetas para a Ribeira de Santarém. Telefonei à Ana da Silva e ela veio buscar-me. Foi um dia bem passado.
COZIDO À PORTUGUESA COM CARNE DE GALINHA...
P- A propósito: como é que passas os teus dias no Lar?
R- Isto não é mau. O quarto que tenho é só para mim, estou à vontade, tem casa de banho privativa, o edifício tem muita luz mas não é nada agradável conviver com velharia quase em estado vegetal.
P-E a comída? Come-se bem aqui?
R- Sim mas com um senão. Como os homens que manda nisto são árabes não há carne de porco nem chouriços. Aparece o cozido à portuguesa com carne de galinha e de vaca. É assim.
P- E visitas, recebes visitas com frequência?
R- Vem malta amiga para me ver, trazer livros, conversar. Almoçam cá comigo. Temos uma mesa para visitas. E recebo muitas cartas. Hoje recebi uma carta da Rita Ferro por causa do meu "Prazo de validade". Gostou.
P- Continuas com projectos para a Contraponto?
R- Agora ando às voltas com uma recolha de crónicas saídas de jonais mais concretamente no "Diário Económico". E ainda não desisti de editar as cartas do Padre José Agostinho de Macedo à sua Freira predilecta. Isto dá muito trabalho: fazer livros a partir de um quarto num Lar de Idosos não é brincadeira.
Terminada a entrevista, Luiz Pacheco ofereceu ao repórter de O MIRANTE um exemplar de "Exercícios de Estilo" ainda a cheirar a tinta. Tinha passado um bom bocado de tempo com o almoço pelo meio: sopa, peixe no fomo e uvas. Sem vinho porque os donos são árabes. No regresso a Lisboa uma imagem distante que encaixa com uma das páginas deste livro: "Decerto esta cidade é a mais bela de todas as cidades do mundo. Ao pé da prisão, ai dos presos, coitados, contando os dias! há um jardinzito e ali um miradouro, vê-se toda a cidade e como é grande, como é bonita, e para lá das últimas casas as searas e a mancha parda dos montados e dos olivais. Vou pelas ruas da cidade e sou toda a cidade."
José do Carmo Francisco

Luiz Pacheco, leitor atento de O MIRANTE num Lar de Idosos em Palmela
Amizade em quartos separados
Num Lar de Idosos há mais tempo para tudo. As manhãs são longas, as tardes parecem não ter fim, as noites são muito compridas. O tempo é outro e a atenção dada a cada coisa é sempre multiplicada pela disponibilidade e pela abertura que só o tempo permite. Não por acaso o repórter de O MIRANTE foi descobrir uma página do nosso jomal recortada e relida na mesa de trabalho do escritor e editor Luiz Pacheco, num lar de Idosos de Palmela. Página três da edição de 10 de Março: "Maus tratos na origem de morte de idosa". A conversa girou à volta dos Lares e dos Idosos mas não só: falámos de um idoso muito especial que saltou para as bocas do Mundo - José Saramago. E também de novos projectos do editor igualmente idoso Luiz Pacheco.
BLOCO DE ESQUERDA? - NAO, OBRIGADO!
O MIRANTE - Porquê estes três meses de isolamento, sem visitas e sem telefonemas?
LUIZ PACHECO - Olha, fiz como certos casais que fazem férias separados. É melhor para os dois quando se reencontram. Eu com os meus amigos fiz o mesmo. Já acabou. Ainda há dez minutos atendi um telefonema.
P - Já agora pode saber-se quem era?
R - Era um amigo do meu filho Paulo a querer que eu assine os papéis do Bloco de Esquerda. Perguntei o que era aquilo e falou-me do Portas mas afinal é o outro, o jomalista. Já não tenho pachorra para essas coisas.
P - Como é que viveste o Nobel do Saramago?
R - Essa barafunda toda também ajudou a que eu me desligasse um bocado da malta dos jomais. Recebi um telefonema do Mário Alberto a dar a notícia e minutos depois era "A Capital", logo a seguir o Nicolau Santos do "Expresso", depois o "24 Horas", a seguir a Agência Lusa". Comecei a ficar chateado e disse que estava a dar o exclusivo ao "El País" ou ao "Le Monde". Despachei-os assim.
P - Mas explica lá como é que pessoalmente viveste o Nobel...
R- O Nobel é uma espécie de vitória de esquerda em Portugal. Toda a esquerda. Mas muitas das bocas abertas pelo Nobel é só inveja. Há muita raivinha mal disfarçada por aí.
P - E a nível mais geral, como é que vês as reacções das pessoas?
R - Muitas pessoas ficaram doidas porque descobriram que se pode ganhar muito dinheiro sem ser na Bolsa ou no submundo das vigarices. A inveja que isto deu... Mais de cento e setenta mil contos...
TUDO O QUE O SARAMAGO DISSER É USADO CONTRA ELE
P- O Saramago é preso por ter cão e preso por não ter, não é verdade?
R - Ele é um pólo de inveja nacional. Tudo o que o Saramago disser é usado contra ele. Depois há um cinismo muito grande: dizem que leram o "Memorial do Convento" e o resto acham difícil mas não leram nada, nem mesmo o "Memorial".
P- A vida dele começa a tornar-se infernal, não é?
R - E dizia ele que queria escrever um livro sobre o Inferno. O Inferno é isto. Ele não tem hipóteses de escrever com tantas solicitações, convites e homenagens. Somos um país de analfabetos. Com Nobel ou sem Nobel tanto faz. Continuamos a ser.
P-Qual é o livro do Saramago de que mais gostas?
R - Gosto muito de um livro menos falado que o "Memorial". Acho o "Levantado do Chão" um livro belo, belíssimo. Tem um sabor a povo e a terra, à alma do povo e à alma da terra.
P - Qual será a origem desta inveja perante o Saramago?
R - É o dinheiro que ele ganhou e a fama e tudo isso. Ir à Suécia receber o prémio das mãos do Rei. Isto é como o "25 de Abril". Os gajos têm inveja e odeiam o Otelo. Odeiam. O que ele disse que deveria ter feito no Campo Pequeno era para fazer; não era para dizer.
P - Achas que o Salazar era fascista ou concordas com o teu vizinho Saraiva?
R-A primeira coisa que ele foi sem dúvida foi salazarista. Claro que prendeu o Rolão Preto mas isso foi o plano dele de eliminar os outros para ficar só ele. Era fortemente individualista. Sobre prisões no tempo do Salazar tenho a minha experiência...
P - Concretamente em que prisão?
R - Foi no Limoeiro era 1947. Apanhei lá presos de delito comum que eram antigos marinheiros. Tinham entrado na revolta dos navios da Armada em 1936 e foram expulsos. Eram de facto presos políticos mas eram tratados cormo se fossem presos de delito comum porque tinham ficado sem recursos, sem trabalho, não puderam refazer a sua vida. Roubavam para comer.
P - Porque é que houve mais portugueses no Viriatos do que nas Brigadas Internacionais?
R - Esse é um dos mistérios não esclarecidos na minha vida. Claro que estava muita gente dispersa e presa mas a verdade é que parece que só houve apoio forte no lado reaccionário. Quero ler o livro do Viale Moutinho sobre a guerra de Espanha.
ISTO DOS LARES É UMA COISA TENEBROSA
P - Como é que funcionas no dia a dia do Lar?
R - Cá me vou aguentando e olha que o nível de lucidez lá fora não é maior que dentro deste lar. Há mais doidos e taralhoucos por metro quadrado mas não é grande a diferença. Continuo a trabalhar na minha editora. Para a semana entra um livro na máquina.
P - Qual é o próximo livro a editar pela Contraponto?
R - Vai ser um trabalho da Hélia Correia, uma novela com o título de "Villa Celeste". Os meus avós matemos viviam em Benfica em duas vilas – Villa Anna e Villa Ventura. Os Lobo Antunes ganharam dinheiro na sorte grande e compraram uma casa enorme ao lado dos meus avós. A história passa-se por ali.
P - Esta página de O MIRANTE está aqui por alguma razão especial?
R - É por causa da morte da velhinha de Tomar. Isto dos Lares é uma coisa tenebrosa. Vocês no jomal não parem. Não deixem cair o assunto dos maus tratos aos idosos. Isto movimenta milhões. Para as farmácias é um maná. Aqui à volta toda a gente lucra, as farmácias da zona de Palmela é sempre a aviar. Onde houver idosos há medicamentos, há dinheiro. Eu estou bem mas há quem sofra e o jornal tem que dar voz a essa gente. Não deixem cair o assunto.
José do Carmo Francisco