Entrevista | 05-08-2025 12:00

Ocupou o lugar do marido na Câmara de Almeirim e sai como a mais antiga com meio século de serviço

Ocupou o lugar do marido na Câmara de Almeirim e sai como a mais antiga com meio século de serviço
Júlia Silva - foto O MIRANTE

Júlia Silva entrou para a câmara a acabar a adolescência, já casada, depois de concorrer ao lugar do marido com quem tinha casado aos 15 anos, quando este teve de ir cumprir o serviço militar obrigatório.

Apanhou o último presidente da ditadura, a balbúrdia até às primeiras eleições livres e termina uma vida de dedicação ao município de Almeirim com o presidente com quem teve mais proximidade porque o viu crescer dentro da câmara desde jovem, Pedro Ribeiro. A coordenadora técnica de tesouraria reformou-se antes do final do mandato porque não teve coragem de assistir a mais um ciclo político.

Júlia Silva era adolescente quando começou a trabalhar e estava a começar a juventude quando entrou para trabalhadora da Câmara de Almeirim para a vaga do marido, de quem se divorciou e de quem tem um filho, que tinha ido cumprir o serviço militar, sendo a funcionária que mais anos esteve ao serviço do município. Reformou-se sem cumprir a combinação de que não sairia antes do final deste mandato autárquico porque não queria apanhar mais uma mudança de ciclo político. Trabalhou com todos os presidentes eleitos no após 25 de Abril, ainda esteve dois meses com o último autarca do Estado Novo, Luís de Margaride, e viveu a turbulência dos tempos das comissões administrativas em que a autarquia funcionava quase em piloto automático com manifestações frequentes à porta dos paços do concelho.
Começou como contínua, nome a que se dava aos actuais assistentes operacionais. Ia aos correios levantar a correspondência e distribuía-a pelas secções, entregava as convocatórias das reuniões, fazia o que era preciso. Aos 69 anos, Júlia Silva não só era a funcionária mais velha da câmara, como também a mais antiga o que lhe valeu um reconhecimento do executivo camarário, reconhecendo que foi com este presidente que teve mais proximidade por o conhecer desde que era pequeno. Começou a trabalhar em 1972, um ano depois de casar aos 15 anos de idade, a dar assistência a três médicos na antiga Casa do Povo da cidade. Entrou para a câmara com a quarta classe. Fez o 12º ano de escolaridade à noite. Subiu a pulso até ao cargo de coordenadora técnica de tesouraria. Sempre gostou de contas e era o serviço onde se sentia bem.

A brincadeira de pôr o vereador a somar facturas
Não se lembra de alguma vez se ter enganado numa conta ou de alguma peripécia, mas uma vez protagonizou uma traquinice com um vereador. Era normal quando o executivo mudava os novos autarcas quererem saber como estavam as contas. O vereador Carlos Mota, acabado de ser eleito em 1989 pelo PS liderado por Sousa Gomes, o presidente que “era incapaz de dizer não”, apresentou-se no serviço para acompanhar a elaboração do balanço do final do mandato e Júlia entregou-lhe um maço de centenas de facturas de água que estavam em dívida e uma máquina de calcular para ele fazer as contas. Mas ainda não tinha chegado a um quinto da tarefa quando Júlia confessou que não era preciso aquele trabalho todo porque a contabilidade das dívidas era actualizada frequentemente.

Os papelinhos no teclado dos primeiros computadores
Com quase meio século de trabalho na câmara, foram muitas as transformações por que passou, como a introdução dos computadores nos serviços. Os teclados em inglês eram chinês para quem estava habituado a trabalhar com papel. Os informáticos começaram então a colar papelinhos nas teclas com as indicações em português. “Eles tinham uma grande paciência e foi com a ajuda deles que fomos evoluindo num mundo completamente novo”, recorda.
Nunca foi convidada para integrar listas às eleições, mas se fosse o mais provável era que não aceitasse, porque “a política altera o carácter devido à necessidade de se sujeitarem aos princípios e interesses políticos”. O seu maior projecto de vida é o seu filho, que também trabalha na câmara como responsável das piscinas municipais. Depois de se divorciar nunca teve problemas em trabalhar no mesmo espaço que o ex-marido, que foi responsável pelos recursos humanos da autarquia. Chegou a organizar espectáculos de solidariedade há uns anos e agora está na Universidade Sénior de Almeirim, dizendo que de coordenadora da tesouraria passou a coordenadora do lazer.

A balbúrdia da liberdade e os ordenados pagos em envelopes

Lembra-se da balbúrdia dos primeiros tempos de liberdade até às primeiras eleições livres com concentrações à porta da autarquia a pedirem que algumas pessoas fossem saneadas. Nunca invadiram os paços do concelho, mas era difícil fazer muito mais do que assegurar o serviço básico. Depois de passar pelo atendimento aos munícipes, Júlia Silva entrou para auxiliar da tesouraria. No tempo em que o vencimento dos funcionários era pago em dinheiro consoante os registos de faltas que eram entregues pelos encarregados, que por sua vez entregavam os envelopes do ordenado aos subordinados. Tudo era controlado ao pormenor, ao centavo, não podia haver qualquer falha.

Quando o primeiro presidente da era democrática a defendeu perante uma suspeita do banco

Júlia Silva sempre foi respeitada e nunca falhou nas suas obrigações, ao ponto de granjear a confiança de todos os autarcas com quem trabalhou mesmo ainda com poucos anos de actividade. E não se esquece o que o primeiro presidente saído das eleições livres de 1976, Alfredo Calado, fez por ela. Era um homem de pulso, mas que defendia os funcionários quando levantavam suspeitas sobre o seu trabalho, como lhe aconteceu quando o banco com o qual a câmara trabalhava levantou a suspeita de que faltava dinheiro num depósito.
Na altura não se sonhava que pudesse haver caixas multibanco ou plataformas online para se fazerem pagamentos ou transferências e o serviço usava muitas vezes o chamado cofre nocturno, instalado na fachada do banco e que permitia “depositar” o dinheiro em envelopes através de uma chave que abria uma ranhura, como uma caixa de correio. A instituição bancária veio dizer que estava menos dinheiro no envelope do que era indicado na folha de depósito deixado no cofre. Alfredo Calado, já falecido, foi com a funcionária ao banco falar com o gerente e disse-lhe: “Eu confio na minha funcionária, o senhor confia no seu funcionário?”. Passados uns dias o bancário que fazia as contas do cofre já não estava na agência.

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