O designer de Alcanena que brilhou em Nova Iorque

O design, a docência e a paixão pelo detalhe e pelas raízes. Tudo isto cabe em Francisco Modesto, o designer gráfico de Alcanena que conquistou a prata no Graphis Design Annual 2026, em Nova Iorque. Com 30 anos e três trabalhos, quer provar que o design de classe mundial pode nascer em qualquer lugar.
Francisco Modesto passou a infância a explorar a sua veia artística através do desenho, forma de expressão que ainda hoje orienta o seu trabalho como designer gráfico para públicos em todo o mundo. Nascido no Ribatejo, criado em Alcanena e com formação académica tirada no Porto e nas Caldas da Rainha, o designer integra a equipa que foi distinguida em Nova Iorque com o prémio Prata no Graphis Design Annual 2026, um dos mais prestigiados do design mundial, com o projecto Enter The Void Festival. Uma iniciativa cultural apresentada em Guimarães, cuja identidade foi desenvolvida por docentes, profissionais e estudantes emergentes e que partiu de uma metáfora central: o salto de fé, um símbolo da vulnerabilidade e coragem que definem qualquer acto criativo.
Aos 30 anos é, como diz, uma pessoa de três ofícios: vice-director do curso de audiovisual digital e professor no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA), designer numa empresa de software para jogos digitais - onde cria jogos para casino -, e designer freelancer. Trabalha para empresas, fundações e organizações não governamentais, para as quais cria uma identidade de raiz. Algo que vai muito além de fazer um logótipo. “É preciso trabalhar toda a identidade visual”, desde como é feita a escrita, a fotografia, a forma como se fala, as cores que se utilizam - que transmitem diferentes sentimentos e têm o poder de influenciar. “O design não é apenas sobre criar visuais, é sobre construir linguagens que ligam pessoas, marcas e histórias”, vinca.
Nesta área é preciso ser-se “irreverente e desafiante” para fazer a diferença e defende que em Portugal há muito bons designers. “Muitas vezes nós sentimos o síndrome do impostor, que é a dúvida de que não estamos ao nível internacional. Mas estamos e prova disso são os grandes currículos de prémios”, sublinha o docente de 30 anos, que já deu aulas a alunos de 50 e que começa sempre as aulas a falar das suas raízes.
Na conversa, que se fez numa tarde ventosa debaixo das arcadas da Câmara de Alcanena, Francisco Modesto define-se como uma pessoa honesta e cuidadosa e que tenta de certa forma lutar contra a tendência natural para o perfeccionismo. “Não podemos olhar para as nossas falhas como derrotas mas como oportunidades para melhorar”, afirma. Orgulhoso das suas raízes, diz que “não interessa onde se nasce” quando se quer ser bem sucedido. “Este prémio deve ser visto como um incentivo para que abracemos a incerteza de que conseguimos provar que o design de classe mundial pode nascer em qualquer lugar”, afirma.
Como é que descreves o teu processo criativo? Caótico, às vezes. Logo ao início dedico grande parte do tempo a estudar, esmiuçar, a recolher imagens, documentos históricos, a ir à procura, com a fotografia a ser um auxílio numa investigação que acaba por ser muito minuciosa. Depois parto para as peças gráficas, ver o que consigo ligar; faço até pequenas maquetes, como os arquitectos. Vejo uma criação como uma identidade global onde tudo tem de fazer sentido e que não pode ser vazia, só bonita, tem de ter uma mensagem e ser trabalhada de forma a poder chegar a diferentes massas.
O papel continua a ser importante num trabalho como o teu? A parte analógica é fundamental. Tento trazer um bocado de estética ao digital e no meu trabalho tenho sempre a parte do analógico e do digital a conjugar-se. A parte da multimédia trouxe muito essa visão.
Não achas então que, de uma forma geral, o que é produzido em papel está em risco? Não! As pessoas gostam de ter artefactos em casa, certo? Quem é que não gosta de ter numa estante livros palpáveis? Acredito que o papel não vai terminar, o que vai acontecer é uma maior consciência do abuso do uso da impressão. Na época industrial, com o boom do jornalismo, houve uma grande impressão em massa para chegar às pessoas, porque era o meio que chegava. Hoje é diferente, existe essa consciência.
Já se tem essa consciência nas campanhas políticas, por exemplo? Sei que muitas gráficas e agências conseguem vencer orçamentos com as campanhas, mas tem de ser consciente. Há outras formas de chegar às pessoas sem ser através dos folhetos, usando o digital e o presencial. Fazer iniciativas, falar com as pessoas, é chegar às pessoas. E são abordagens que podem ser feitas e estender muito para além do que é um conteúdo. Porque um conteúdo não deixa de ser apenas um conteúdo. Se as pessoas não criarem empatia, uma conexão com a peça, ela é só isso. Podemos dizer que é só meramente belo naquele momento, mas não existe conexão com a parte humana que é fundamental.
É possível a uma empresa que se queira posicionar no mercado não trabalhar as redes sociais? Diria que é impossível! Viver fora das redes sociais é viver fora da interacção e da tecnologia. Temos que abraçá-la. Ainda para mais nesta era da inteligência artificial (IA) que é uma bolha que pode vir a rebentar entretanto, no mau sentido. Já se pede tanta demanda da parte da IA que a vemos a falhar com erros graves de interface e a gerar afastamento da identidade... Podemos usar a IA para potencializar o nosso conhecimento mas não usá-la em exclusivo para criar, porque tem de haver essência, propósito, valor emocional e de conexão.
Olhas para a IA como se fosse uma vilã em relação ao teu trabalho... Vejo-a como uma ferramenta que pode vir a potencializar o trabalho dos designers mas que mal utilizada pode ser perigosa. Acho mesmo que, nesta área, o que conta é a criatividade e irreverência, o ser único. E aí a IA pode ir até certo ponto, mas não vai trazer essa exclusividade, essa diferença. Isso nasce das pessoas.
Com tanto conteúdo feito como é que se chega ao único, ao diferente? É verdade que já é muito difícil alcançar a originalidade e fazer algo icónico. Se estivermos a falar, por exemplo, de um nome da história, o Milton Glaser, um grande designer que fez o simples monograma I Love New York, percebemos que, apesar de ter sido alterado recentemente, houve um grande ‘boom’ contra essa manipulação. O que mostra que o que foi criado mexeu e ficou ligado às comunidades. Ou seja, acredito que para se criar algo único e icónico só a peça em si não basta, tem que ter uma comunidade à qual se chega.
Falando em monogramas, vemos inúmeros espalhados pela região, em rotundas ou jardins, com os nomes das localidades. É uma boa aposta para a promoção? É importante no sentido de marketing e de território porque as pessoas quando vêem memorizam, mas tem de haver uma progressão. O que se pode questionar é a forma como são colocados: por que não são de um estilo diferente, por que não têm uma letra diferente? O que é que através dessas letras podemos potencializar desse território? Mas se calhar nem todas as terras têm uma potência cultural para ter essa abordagem...
Gostavas de deixar o teu cunho em Alcanena? Gostava mesmo de causar impacto em Alcanena na parte cultural e artística. Tenho muitas ideias que estão em andamento por minha iniciativa e que espero que se concretizem. Seriam também uma forma de honrar a minha família, os meus antepassados.
No trabalho tem de haver equilíbrio
Achas que está na moda ser-se viciado em trabalho? Acho que está e está a haver um crescimento novamente da iniciativa de trabalhar num esforço intenso, de se fazer muitas horas, trabalhar muito. Se calhar é um crescimento da política de direita. O lado direito que tem vindo a surgir nos últimos anos no mundo. Eu faço-o porque tenho muita paixão, mas não aconselho de todo.
Já estiveste à beira do burnout? Já tive vários esgotamentos e tive que aprender com eles. Sacrifiquei feriados, férias... Hoje, com 30 anos, sei quais são os meus extremos e quando devo abrandar. Não vou querer mais sacrificar o tempo pela família. Porque, depois, de que vale ir receber distinções sem ter com quem as comemorar?
As empresas têm nesse aspecto um papel importante, de zeladoras da saúde dos seus trabalhadores? No trabalho tem que haver um equilíbrio e, acima de tudo, tem que haver uma consciência da saúde mental e da pessoa. Acredito que nós todos trabalhamos mais e melhor se tivermos um equilíbrio. E que há momentos da vida das pessoas em que o cansaço é maior, por motivos familiares, como a chegada de um recém-nascido, e que devem ser tidos em conta. São momentos em que a parte profissional tem que abraçar a pessoa.
Há algum sonho maior que queiras concretizar a nível profissional? Quero ajudar a fazer crescer uma nova geração de criativos. Esse é o primeiro sonho e o mais humilde. Depois, quero conquistar mais alguns prémios ou marcos na minha vida, não só para dizer que os tenho numa estante, mas para dizer que Alcanena existe e dar esse orgulho à minha família.