Não é por falta de actividade cultural que o centro histórico de Santarém está decadente
Com instalações próprias, sem dívidas e muitas actividades e valências ligadas às artes, cultura e tradições, o Círculo Cultural Scalabitano é uma referência na cidade de Santarém e um pólo de vida no centro histórico da cidade. Vítor Murta é presidente da direcção há ano e meio e tem mais um ano de mandato pela frente. O MIRANTE conversou com o dirigente em vésperas da celebração de mais um aniversário da associação.
Como é gerir tantas capelinhas, entre aspas, dentro da mesma associação, como é o caso do Círculo Cultural Scalabitano?
É fácil. Cada secção tenta chegar aos seus objectivos. Mas elas próprias, com a sua acção, geram receitas. E é da mais elementar justiça que essa receita também seja aplicada em coisas que elas pretendam fazer. As secções envolvem mais de uma centena de pessoas, sem contar com as academias. São totalmente amadoras, não há profissionais.
É fácil encontrar gente interessada em dar do seu tempo ao associativismo? Os jovens aderem às vossas actividades?
Sim, nomeadamente às academias. Estamos a ter grande participação de jovens e crianças. A Academia de Dança é uma referência. A Academia de Teatro, dirigida pela Fernanda Narciso, está-se a tornar também uma referência e este ano tem duas turmas de crianças e adolescentes.
E para os órgãos sociais?
Para o associativismo é muito mais complicado. Por exemplo, parte da equipa que temos hoje transita da equipa do Eliseu Raimundo e fui convidar algumas pessoas novas relacionadas com as valências do Círculo. Foi assim que conseguimos fazer uma nova lista para a mesa da assembleia-geral e conselho fiscal. As pessoas hoje estão muito ocupadas, há também outras solicitações.
As pessoas, se calhar, também estão mais individualistas e menos viradas para o trabalho comunitário.
Eu não diria tanto. É mesmo a vida de todos nós que é mais exigente. E, depois, também é preciso estar com a família, sobretudo quem tem crianças pequenas. Isso também é um problema.
E é uma vantagem ou uma desvantagem estarem aqui em pleno centro histórico, com as vicissitudes e virtudes conhecidas?
Acho que é uma vantagem, se bem que ainda hoje muita gente desconhece o Círculo, situado aqui na Travessa Mestre Luís Silveira que a determinada altura também foi denominada por rua. Apesar de estarmos no centro histórico, estivemos fisicamente escondidos dos olhares porque aqui em frente havia um grande edifício. Agora estamos mais expostos a quem passa. O presidente da câmara pretende avançar com a aquisição do terreno em frente para criar um anfiteatro ao ar livre e parque de estacionamento, para dar apoio à recuperação do Teatro Rosa Damasceno. Para nós é uma valorização.
Acredita na recuperação do degradado Teatro Rosa Damasceno? Foi uma boa aposta a sua aquisição pela Câmara de Santarém para ali criar uma Casa das Artes e da Cultura?
Acredito nesse projecto e acho que é uma boa aposta. Santarém merece esse espaço. O próprio edifício merece essa vontade e essa recuperação. Portanto, acho altamente positivo. Aliás, foi com agrado que ouvi essa intenção na tomada de posse do novo executivo.
Foi fácil um professor de dança adaptar-se também à gestão de uma associação como o CCS?
Eu já vinha desde 2007 na equipa do Eliseu Raimundo. Trabalhávamos diariamente para resolver os assuntos. Portanto, a diferença não foi muita. A responsabilidade é que é totalmente diferente. Mas não foi nada de mais, porque também estou nesta casa desde os anos 80. Vim para aqui após o meu percurso na ginástica e apanhei uma altura em que isto estava a mexer. Sou fundador do Grupo Experimental de Bailado de Santarém, que depois tomou a forma de cooperativa, evoluiu para Companhia de Dança de Santarém e depois, mais tarde, Companhia de Dança do Tejo. Mais tarde estive na direcção de outra associação, o Clube de Todo-o-Terreno de Santarém. Mas continuei aqui no Círculo, onde conhecia toda a gente, todas as secções, todos os departamentos e o funcionamento.
O comércio local tem apoiado a instituição? É fácil de arranjar patrocínios?
No associativismo que se faz nas aldeias e nas vilas as pessoas participam em massa. Aqui na cidade a coisa é diferente. Se virmos um cartaz de uma aldeia ou vila, eles são uns sortudos em termos de apoios. Mas também temos apoios e é importante referir o do W Shopping, que sempre teve uma boa relação com o Círculo. Essa relação tem-se mantido na pessoa do dr. Rui Rosa, que está sempre disponível para nos apoiar. A mesma coisa com a União de Freguesias da Cidade de Santarém, que certamente continuará agora, apesar da mudança de presidente; e também com o Município de Santarém. Portanto, não antevejo que haja grandes alterações. O Círculo sempre foi uma referência cultural na cidade, dadas as suas valências. Como dizia o dr. Botas Castanho, é a associação mais eclética e em Santarém não há nenhuma como a nossa.
Quais são os grandes desafios do Círculo para os próximos tempos?
O principal é manter o edifício. Não gosto muito de falar em projectos, porque pode dizer-se o que se quiser. Prefiro ficar caladinho e quando as coisas acontecerem a gente apresenta, mostra que conseguimos fazer isto ou aquilo. Mas um dos objectivos mais imediatos é tentar arranjar espaço para arrumar as coisas que temos do teatro. Após tantos anos de trabalho, de projectos e peças, têm muito guarda-roupa. Temos cabides de roupa por todo o lado.
Como vê o actual panorama cultural de Santarém?
Muito activo.
Há quem diga que a cidade está morta. As pessoas não sabem o que acontece na cidade? É uma percepção errada?
As pessoas não sabem porque Santarém também cresceu muito. E as partes novas, para muitos, são dormitórios. Estão de passagem, vão para o comboio, vão para Lisboa e para outros sítios. Também já há muita gente que vem de Lisboa para Santarém viver, porque encontra aqui casa a outro custo e os acessos são bons. Lisboa continua a estar muito perto e com esse dia-a-dia as pessoas cansam-se e depois não têm apetência. Ou então, como estão habituadas, vão a Lisboa ao teatro, ao cinema, a uma exposição ou a um museu, que aqui não há… Mas o município tem feito um esforço de divulgação. E nem assim as pessoas vão aos espectáculos.
Os vossos espectáculos têm tido boa adesão.
Sim, as pessoas têm aderido, tanto nos espectáculos feitos fora do nosso espaço como aqui. E tem sido feito um esforço no sentido da criação de públicos, designadamente no capítulo da informação e divulgação. Daí também o nosso esforço em conseguirmos ter todos os dados dos sócios para facilitar a comunicação com eles, nem que seja por email. A informação não falta.
O programa de animação Verão in.Santarém, promovido pelo município, é uma aposta ganha?
Então não é! O Verão in.Santarém e outros, como o in.Vilas. As actividades já não ficam só aqui em Santarém e vão também às freguesias, permitindo ao público ver outras coisas.
Tem pena de ver Nuno Domingos deixar o pelouro da Cultura da Câmara de Santarém?
Com certeza que tenho. Fez um excelente trabalho. Já tinha provado a sua competência e ter sido vereador da Cultura foi fantástico. Ele conhece todos os agentes culturais do concelho. Aliás, ele conseguia ir a todos os eventos. Deve ter falhado muito poucos e, se calhar, por motivos de saúde ou porque não conseguia estar em dois sítios ao mesmo tempo. Quem vem a seguir é pegar nas coisas e tentar dar continuidade, mas também trazer outras ideias e temas que valorizem ainda mais esse trabalho que foi feito.
O que acha do centro histórico de Santarém actualmente?
Acho o que toda a gente acha, ainda por cima com a minha idade, sendo da cidade e conhecendo como foi Santarém noutras alturas. É com alguma tristeza que vemos o centro histórico. Mas também não se pode atirar as culpas só para o município, porque as próprias pessoas, os próprios empresários da cidade, também têm uma quota parte de culpa, pelo menos na tentativa de revitalizar o centro histórico. Mas também outras cidades passaram por isto, e não é só em Portugal. O que aconteceu andou à frente das pessoas. As pessoas acordaram tarde.
Acredita que é possível dar a volta à situação e as coisas começarem a melhorar?
Essa é a grande dificuldade. Tentar revitalizar o centro histórico deve ser um esforço conjunto.
O Círculo Cultural Scalabitano tem dado o seu contributo para isso, ao dar vida a estas instalações todos os dias, tal como, por exemplo, o Conservatório de Música ou o Centro Cultural Regional de Santarém.
É exactamente isso. Em termos de actividade cultural dos seus agentes não há falta.
Não é por aí que o centro histórico de Santarém está decadente.
Não é por aí, realmente. Temos dado o nosso contributo nesse sentido mantendo-nos activos, com o apoio do município, da União de Freguesias da Cidade, com apoios privados desde os individuais aos de empresas.
Santarém enche-lhe as medidas como cidade para viver?
Então não enche! Vivo no centro histórico há 60 anos, sou um filho de Santarém. O meu avô tinha cá uma casa, ficou depois para a família, para o meu pai quando se casou. Nasci no hospital antigo. Fiz toda a minha formação aqui. A determinada altura vim para aqui para o ballet porque tinha cá a namorada e para manter a forma. E vejo-me envolvido num projecto de fazer um grupo experimental de bailado. Foi uma bola de neve e, em menos de um ano, dou comigo no Conservatório Nacional de Dança.
A dança mudou a sua vida?
Mudou. Confesso que na altura andava um bocado perdido sobre o que é ia fazer, quais os estudos a seguir.
Nunca sentiu o apelo pela política?
Não. Eu acompanho a política nacional e local mas não é uma coisa que me seduza. Nunca me voltei para a política. Não sou filiado em nenhum partido. Ninguém sabe das minhas opções políticas, podem achar que sou assim ou assado, mas o voto é secreto. Não sou apolítico, tenho as minhas opções políticas, mas não faço política, só se for cultural…..
Círculo Cultural Scalabitano: sete décadas ao serviço da cultura e do ensino artístico
São mais de sete décadas ao serviço da cultura e das artes, da memória e das tradições ribatejanas. O Círculo Cultural Scalabitano (CCS) comemora o 71.º aniversário, com um jantar, no dia 6 de Dezembro, e pode dizer-se que ainda não acusa o peso da idade. Com instalações próprias e já pagas, num edifício situado em pleno centro histórico de Santarém, junto à Igreja de São João do Alporão e à Torre das Cabaças, a colectividade vive uma situação financeira estável, sem dívidas, e dinamiza uma série de actividades culturais e de ensino artístico que fazem dela um importante pólo de vida na zona antiga cidade.
O grande desafio da direcção é a manutenção das instalações, com vários pisos, divisões e recantos, diz a O MIRANTE Vítor Murta, presidente da direcção desde Abril de 2024, membro da direcção do CCS desde 2007 e um dos responsáveis pela Academia de Dança que ali está instalada. As fendas e infiltrações constituem a maior dor de cabeça e exigem atenção e resposta permanentes da direcção, que tem mais um ano de mandato. Exemplo disso foi a mudança de algumas janelas, que contou com o apoio financeiro da Câmara de Santarém.
O imóvel, requalificado e ampliado no final do século XX, acolhe o histórico Teatro Taborda, salas para ensaios, para o ensino da música, da dança e para reuniões, biblioteca, camarins, bar e até uma oficina ligada ao Veto Teatro Oficina. O grupo de teatro, com mais de meio século, constitui uma das secções do CCS que ali desenvolvem actividade, a par da Orquestra Típica Scalabitana, que cumpre 80 anos de actividade em 2026, e do também já cinquentenário Coro do Círculo Cultural Scalabitano, outras referências culturais da cidade. No ensino artístico, para além da dança, há também academias de música e de teatro. Existe também um departamento de ar livre e de lazer e outro ligado à Biblioteca Guilherme de Azevedo, liderado por Luísa Barbosa. O presidente faz questão de frisar o entusiasmo dos elementos e directores das secções e das academias, dos professores e formadores, que permitem ao Círculo navegar em águas calmas.
Apoio autárquico é fundamental
Vítor Murta destaca que a aquisição do edifício, no mandato de Pedro Canavarro como presidente, e posterior recuperação e ampliação das instalações trouxe uma nova dinâmica à associação, permitindo o desenvolvimento em simultâneo de uma série de actividades naquele imóvel. “Foi um dos momentos-chave da história do Círculo a seguir à sua fundação, na qual Ginestal Machado muito se empenhou, que nos permite estar aqui hoje cheios de vida e sem grandes preocupações”, vinca. O CCS tem algumas, poucas, centenas de sócios. Vítor Murta não consegue dar um número exacto, pois neste mandato uma das missões é precisamente a de regularizar e informatizar toda a situação dos sócios e a comunicação com os mesmos.
O dirigente reconhece a importância do apoio do município às actividades da associação, nomeadamente através do Plano de Apoio ao Associativismo de Agentes Culturais, mas também apoio pontual para realização de obras. E admite que seria difícil gerir o CCS sem essas ajudas. Além disso, há ainda receitas provenientes de actividades pontuais para as quais são convidados, como vai acontecer agora durante o Festival de Órgão de Santarém. Contam também com receitas próprias resultantes das academias de artes, que são autónomas na sua gestão e que também têm as suas despesas. “A receita que geram não é assim uma coisa fantástica por aí além”, diz, acrescentando que não conhece nenhuma associação cultural que seja rica.
Uma carreira dedicada à dança
Vítor Murta nasceu em Santarém a 6 de Agosto de 1962. É formado pelo Conservatório Nacional de Dança, hoje Escola Artística de Lisboa, e tem também o curso de professores da Royal Academy of Dance. É casado, tem um filho e uma filha e já é avô. É professor na Academia de Dança e Expressão Corporal do CCS, a que se dedica a 100 por cento.
Em jovem praticou ginástica em Santarém. Começou por brincadeira, aos seis anos, na Casa do Benfica em Santarém e em 1977 sagrou-se campeão nacional de trampolins. Deixou os saltos e piruetas devido a lesões. Saído do mundo da ginástica aos 18 anos, procurou outras actividades e, juntamente com a namorada na altura, que praticava ballet no Círculo Cultural Scalabitano, começou a envolver-se em grupos de dança que foram crescendo até se criar o Grupo Experimental de Bailado e mais tarde a Companhia de Dança do Tejo. Durante vários anos fez espectáculos por todo o país, formou-se em dança e começou a ensinar ballet em diversos pontos da região ribatejana, como Vila Franca de Xira, Abrantes, Tomar e no Cartaxo.
Esteve muitos anos ligado ao ensino da dança no Ateneu Artístico Vialfranquense, o que lhe valeu ser agraciado como cidadão de mérito da cidade de Vila Franca de Xira, distinção atribuída pela Junta de Freguesia de Vila Franca de Xira que muito o honrou.
Associação nascida de uma fusão
Como se pode ler no site da instituição, o Círculo Cultural Scalabitano foi fundado em Julho de 1954 a partir da fusão de duas associações: o Clube Literário Guilherme de Azevedo e o Orfeão Scalabitano, agremiações que hoje seriam centenárias. No entanto, a primeira direcção do CCS só foi eleita a 27 de Dezembro de 1955, pelo que o aniversário é habitualmente celebrado no último mês do ano. A associação assumiu-se, desde a sua fundação, como um motor cultural na cidade de Santarém e no Ribatejo. No dia 6 de Dezembro, um jantar marca a celebração do 71º aniversário.
A sede localiza-se num espaço onde se instalou, em 1895, o Teatro Taborda. A fusão teve como objectivo criar uma forte unidade associativa que permitisse desenvolver arte, teatro, música e cultura popular, numa perspectiva de democratização da cultura. A reabilitação, modernização e ampliação da sede decorreu entre 1995 e 1997, numa intervenção de fundo que manteve o palco original e adaptou o edifício a múltiplas funções culturais. A empreitada mereceu prémios nas áreas de conservação e de defesa do património. Em 2024, procedeu-se ao depósito dos arquivos do CCS e das entidades que o antecederam no Arquivo Distrital de Santarém, composto por 21 metros lineares de documentos, os mais antigos remontando a 1779, constituindo evidência de uma evidência profunda.


