Entrevista | 14-03-2022 15:00

Edição Semanal. Diogo Soares: “Nunca se soube tão pouco sobre tanta coisa”

Diogo Soares é psicólogo clínico na APPACDM de Santarém e nos tempos livres dedica-se ao desenho e

Diogo Soares, 34 anos, é psicólogo clínico na Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental (APPACDM) de Santarém. Sempre que pode dedica-se ao desenho e à pintura para dar asas à sua criatividade e abstrair-se da realidade com que lida diariamente. Nesta entrevista a O MIRANTE explica como a psicologia e a arte não vivem uma sem a outra, fala sobre “analfabetismo emocional” e lamenta que a maioria das pessoas escolha viver no virtual e não na realidade.

O conhecimento está desvalorizado?

Sinto que nunca tanta gente soube tão pouco sobre tanta coisa. Na cultura actual da sociedade não existe muito tempo para investir numa educação que vá além do contexto formal. Os pais estão menos tempo com os filhos e acabam por facilitar a utilização de meios de entretenimento para descarregarem a responsabilidade de lhes transmitir conhecimento.

Cada vez há menos pessoas a pensar?

Não estou na cabeça das pessoas, mas tenho uma opinião muito própria do assunto. O acesso à informação, nem sempre fidedigna, está demasiado facilitado e isso acaba por neutralizar a necessidade de pensar. A curiosidade intelectual e a criatividade são muito pouco estimuladas. Por exemplo, na escola alguns professores preocupam-se apenas em reproduzir aquilo que já existe, não vão mais além. Nesse aspecto, a arte é um bom incentivo porque pode pegar-se numa coisa de raiz e começar a criar até conseguir o produto final.

Também há pouco tempo para viver a tristeza?

Há pouco tempo para pensar nas emoções; o que não falta por aí é analfabetismo emocional. A educação emocional, alias, é uma área que só se começou a falar há muito pouco tempo. Em contexto educativo existe um grande investimento na educação cognitiva, na educação académica e desinvestimento ao nível da educação emocional. Vê-se muito pouca gente a caminhar na rua sem estar a mexer no telemóvel ou a falar com alguém.

Somos demasiado funcionais?

É uma questão que mexe muito comigo porque sou a antítese. As pessoas não desfrutam do presente. Faz-me imensa confusão as pessoas estarem num evento e estarem mais preocupadas em tirar fotografias, por exemplo. Há uma necessidade enorme de tornar público o que vivemos. As pessoas querem tanto dar-se a conhecer que acabam por não se conhecer a elas próprias.

As redes sociais ainda vieram alimentar mais essa necessidade.

Sim, porque anda tudo preocupado com o virtual e não com a realidade. Isso vai interferir com a capacidade de observação e de apreciar o ambiente que nos rodeia. A maior parte do que absorvemos na Internet não é conhecimento; muitas vezes são conceitos e frases sem fundamento e que ainda por cima não têm a identificação do autor. Também já fui consumidor das redes sociais, mas depois caiu-me a ficha e há vários anos que sou “anti-social”. (risos)

“Não se muda a realidade de uma criança sem mudar o sistema familiar”

Quando começou a imaginar-se psicólogo?

Quando compreendi que não somos seres isolados e que precisamos do outro para viver. As palavras são terapêuticas e podem mudar a vida das pessoas. Quando percebi isso, através das minhas relações informais, achei que faria sentido seguir psicologia e contribuir para melhorar a vida de alguém.

Como foi a sua primeira experiência?

Estudei muito e consegui um excelente estágio no Hospital de Évora, no departamento de Psiquiatria, e comecei logo a trabalhar com crianças com muitos transtornos, nomeadamente alterações explícitas no comportamento. Mas gostava de salientar que este trabalho não é realizado apenas com crianças; não se muda a realidade da criança sem mudar o seu sistema familiar. Todos têm de trabalhar em conjunto, enquanto equipa, para conseguir fazer essa mudança.

É difícil trabalhar com os pais?

É mais difícil trabalhar com os pais porque as crianças são flexíveis; pode pegar-se numa criança e transformá-la num ladrão ou num cientista. Os pais já estão formatados e são muito mais resistentes à mudança.

Como é um dia do seu trabalho na APPACDM?

Antes de responder, quero dizer que estou na instituição há cerca de oito anos e considero que se tem feito um trabalho notável. O meu trabalho vai diversificando, mas existe um grupo de crianças que acompanho diariamente e outro grupo que observo pontualmente para despistar e perceber quais as suas necessidades. Na APPACDM trabalho com adultos, ainda que tenham uma idade mental inferior à idade cronológica. Estou direccionado para as perturbações do neuro-desenvolvimento, pessoas que estão institucionalizadas por terem deficiência mental.

Há sempre forma de melhorar a vida das pessoas independentemente da sua condição mental?

É preciso criatividade para trabalhar com esta população. É preciso muita flexibilidade, criar instrumentos de trabalho para conseguir chegar a este público, porque têm a cognição condicionada. Trabalho com casos de duplo diagnóstico, pessoas que têm deficiência mental e ao mesmo tempo perturbações psiquiátricas. Na maioria das vezes elas próprias percebem que precisam de ajuda, e isso é uma mais-valia.

Qual é a sua missão enquanto psicólogo?

É garantir que o cliente tem ferramentas suficientes para viver a vida de forma autónoma, dentro das suas limitações. Para isso é preciso ter abertura e compreender a pessoa para decidir qual a abordagem adequada. No caso da perturbação intelectual deve trabalhar-se mais na área comportamental.

O trabalho afecta a sua vida pessoal?

É uma pergunta que me fazem com frequência! Não, porque pratico o distanciamento com os casos que acompanho. Atenção que não nos podemos distanciar ao ponto de não sentir empatia pela pessoa e perceber a sua realidade, mas também não nos podemos aproximar em demasia senão acabamos por entrar na esfera emocional e deixas de conseguir ajudar. Resumindo, não durmo com os problemas das pessoas com quem trabalho.

Pode partilhar um caso de sucesso de um paciente?

Lembro-me logo de um caso muito complexo que me marcou por ter sido dos primeiros. Era um caso de alterações do comportamento, de comportamento de oposição, desafiante, de heteroagressividade. Ele estava a mexer com a instituição e conseguimos remover todos esses sintomas em menos de seis meses. Ele continua na instituição, mas até hoje nunca mais teve problemas desses. Infelizmente tem um grau elevado de deficiência mental e não consegue integrar-se no mercado de trabalho normal.

A arte como uma forma de transmitir emoções

Sente-se mais vocacionado para a pintura ou para a psicologia? Não consigo dissociar uma área da outra. A arte é uma forma de transmitir emoções e os meus quadros têm essa particularidade. Depois de perceber que há uma interface entre a psicologia, pedagogia e arte, realizei entrevistas a artistas para perceber que relação tinham com a inteligência emocional e de que forma as duas áreas contribuíam para o seu bem-estar psicológico. Percebi que as duas se complementam!
O que o inspira para pintar? Interessa-me muito a vertente cognitiva. Todas as obras que estão expostas no meu pequeno estúdio/escritório marcam várias fases da minha vida e têm um carácter exploratório. A Carmen Miranda, o urso no estendal com uns ténis, o cavalo a galopar, a casa à beira do rio Tejo; são tudo pinturas com uma história por trás.
Histórias que viveu ou que gostava de ter vivido? Passo muito tempo a pintar cada quadro e penso em muitas coisas quando o estou a fazer. O urso com uns ténis no estendal, por exemplo, transporta-me para o período da adolescência; é um período de transição onde desejas permanecer na infância, com todas as regalias, mas ao mesmo tempo queres projectar o futuro e as tuas ambições.
Como define o seu processo criativo? Não consigo desprender-me da racionalidade, mas foco-me principalmente na natureza. Claro que existe uma componente técnica, mas a partir do momento em que se domina a técnica começa-se a criar com base na intuição. Uso várias técnicas mas a que gosto mais é a do pastel a óleo porque fico com as mãos todas sujas (risos). Também gosto de apanhar uma caneta à mão e começar a desenhar. Nas pausas do trabalho faço isso para me abstrair, mas também há dias em que não desenho nem pinto por estar mais cansado.
Quais são as suas ambições na arte? Já vendi quadros e fiz várias exposições em Santarém, Lisboa e Coimbra. A minha primeira exposição foi na Sala de Leitura Bernardo Santareno, em Santarém, e a partir daí comecei a expor alguns trabalhos. Já vendi um quadro por 1.200 euros.
Não se agarra emocionalmente aos quadros que pinta? Quando os vendo sinto que é como se arrancassem uma parte de mim, mas a seguir compenso criando outro. O primeiro quadro que vendi era uma paisagem com carvalhos e ainda o pintei em Évora. Entretanto já pintei centenas, mas guardo na memória cada um deles.

Questionário de Proust

Qual é a qualidade que mais aprecia em si? A persistência.
E o defeito? A inflexibilidade comigo próprio. Quero sempre fazer melhor porque nunca estou satisfeito com o meu trabalho.
O que mais aprecia num amigo? A honestidade.
Que ideia tem da felicidade? Viver de forma mais simples possível e valorizar as coisas que temos. Às vezes somos felizes mas não nos apercebemos porque andamos distraídos com coisas fúteis.
Em que país gostava de viver? Provavelmente num país onde houvesse muita natureza como a Dinamarca ou Noruega.
Quem são os seus heróis? Não tenho heróis. Há pessoas que admiro, mas conheço-as a todas. Não me fascino por pessoas que não conheço.
O não suporta? Pessoas egoístas.
Arrepende-se de alguma coisa na vida? Já devo ter magoado alguém inconscientemente, mas não me arrependo de nada do que fiz conscientemente.
Como está o seu estado de espírito actualmente? Muito tranquilo. Estou em paz com as escolhas que tenho feito e com vontade de continuar a lutar pelos meus objectivos.

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