Entrevista | 17-08-2022 15:00

Um mau professor primário pode desgraçar um grupo de alunos

Maria João Amante, professora e dirigente associativa, foi distinguida com o galardão de mérito da União de Freguesias de Alverca do Ribatejo e Sobralinho pelo seu percurso profissional e cívico

Pela sala de aulas de Maria João Amante passaram centenas de crianças dos concelhos de Alenquer e Vila Franca de Xira. A professora, que nunca bateu num aluno, sentou-se com o O MIRANTE num dos jardins da terra onde vive, o Sobralinho, para falar do ensino, do papel dos professores e da sua crescente perda de autoridade. Uma conversa à sombra numa tarde quente de Verão onde considerou que a ignorância e a falta de tempo para pensar são dos maiores flagelos da sociedade actual.

Os professores do primeiro ciclo são os mais importantes no futuro escolar dos alunos? A primária é a porta de entrada na sociabilização. Os professores da primária são fundamentais para que a criança venha a ser boa aluna. Se tivermos uma atitude proactiva conseguimos fazer a diferença, mesmo que a turma seja difícil. Um mau professor primário desgraça um grupo de alunos. Felizmente há sempre jovens resilientes que dão a volta por cima.
Reguadas na escola, sim ou não? Levei algumas e lembro-me de quando estava na escola pensar que quando fosse professora não iria bater nos alunos. E assim fiz. Nunca bati num aluno. Quando tinha vontade de fazer alguma coisa mais agressiva saía da sala e eles percebiam que tinham errado. Tive algumas turmas com meninos difíceis mas temos de tentar ter uma dose grande de carinho, compreendê-los, falar com eles e não os expor perante a turma.
Os professores hoje sofrem de uma grande falta de respeito por parte dos pais… Passámos de um extremo ao outro. A primeira coisa que os pais perguntam ao filho é o que o professor lhe fez e não o que ele fez para o merecer. Foi uma mudança drástica. As pessoas abraçaram a liberdade como um sentimento de poder fazer e dizer tudo o que lhes apetecer. O professor tem de saber andar de braço dado com os pais e eles têm de aprender que estamos com os miúdos cinco horas por dia e precisamos do apoio deles. Só pedimos que não falem mal do professor à frente do filho, senão perdemos autoridade na sala e eles acabam por não saber onde está a razão, se do lado dos pais ou do professor. Há pais que fazem esperas aos professores à porta das escolas. O pior que um menino pode ver é os pais a levantar a voz para um professor.
A escola não educa? A educação vem de casa. O problema é que a família desestruturou-se muito na última década. Os filhos saem cedo da casa dos pais, perdem o acompanhamento e devíamos sentar-nos todos para conversar sobre isto. Os pais hoje não têm tempo para os filhos. Veja-se os meios tecnológicos: são bons para eles fazerem actividades mas não pode ser a toda a hora. Muitos pais dão o tablet aos miúdos porque querem comer sossegados ou ficar a descansar no sofá depois de um dia cansativo no trabalho. Os pais demitiram-se das suas responsabilidades para ficarem no silêncio. É uma fuga. Uma fuga muito negativa.
Onde é que as crianças têm mais dificuldades na primária? Língua ou matemática? A escrita organizada é o mais difícil de aprender. Habituam-se a fazer frases curtas com as palavras que já sabem mas o salto maior é passar para a escrita evoluída. E isso é provocado pela falta de leitura dos meninos fora da escola. As crianças precisam de ter acesso aos livros em casa. Se fosse hoje voltaria a ser professora. Tenho a loucura de sentir que posso fazer a diferença onde estou. Cada um de nós tem que fazer o melhor que sabe e pode.
Se almoçasse com o ministro da Educação o que lhe diria? Levava uma lista porque há muito a dizer. Começava por perguntar-lhe quem é que lê os livros do Plano Nacional de Leitura (PNL) de fio a pavio. Essa lista não tem em conta o salto editorial que foi feito nos últimos anos para tratar certos temas que são urgentes serem tratados, como a diferença da cor e de género. Alguém pensou aquele conjunto de livros para o PNL e foram ficando. Faz falta agitação e novidade. Não faz sentido decorar “Os Maias” na escola. Os meninos estão muito evoluídos intelectualmente numa direcção tecnológica onde já sabem mais do que a escola ensina em alguns pontos e depois noutros estão deficitários. Há autores e livros bons que não estão no PNL e deviam ser dados, como o “Um salto de gafanhoto”, da Margarida Fonseca Santos. Temos de insistir nos livros e criar na criança o entusiasmo para ler.
É criminoso não se ensinar mais autores neo-realistas na escola? Não gosto da palavra criminoso mas é sem dúvida perturbador. Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Álvaro Guerra e José Saramago estão no PNL mas faltam muitos mais, como o Carlos de Oliveira ou o João José Cochofel. Temos de ter acesso a todo esse conhecimento para abrir o espírito crítico. Podemos não concordar com o que escreveram mas temos de ler primeiro e conhecer. A ignorância é o maior problema da nossa sociedade. Não há silêncio hoje em dia. Perderam-se os momentos a sós para pensar nas coisas. Vivemos cercados de ruído e de estímulos a toda a hora.
Devia ler-se mais jornais nas escolas? Concordo. As escolas podem fazer a diferença e ensinar os miúdos a gostar de jornais e a incutir neles o gosto por esse meio impresso. Não acredito que os jornais possam acabar. Eu comecei a ler através dos jornais, no café, com o meu avô e os meus pais. Ainda leio muitos jornais e também sou assinante de O MIRANTE há mais de uma década. Jornal, para mim, tem de ser em papel. Também gosto de ir ao online mas apenas para ver os vídeos. O resto gosto de ler em papel.

Ver a cultura a andar de lado

Maria João Amante considera que a cultura no país não tem andado para trás nos últimos anos, mas antes “bastante para o lado”. Foi distinguida com o galardão de cidadã de mérito do Sobralinho este ano pela União de Freguesias de Alverca do Ribatejo e Sobralinho e diz ainda estar surpresa com a indicação do seu nome. “Só disse à minha família mais chegada. As outras pessoas viram nas fotografias”, afirma.
Mulher optimista por natureza, sonha ir aos Açores e confessa que não viaja muito. “As minhas viagens faço-as nos livros”, conta. Tira-a do sério as injustiças e a guerra. As salas do Palácio do Sobralinho e a Biblioteca Municipal da Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, são os seus locais favoritos do concelho. Ainda hoje vai às bibliotecas requisitar livros. “Faz-nos mal o magnetismo dos ecrãs. Estar à volta dos livros é delicioso, por isso, não vejo um fim para as bibliotecas”, defende.
Considera que há coisas bem feitas no concelho mas tem pena que muitas vezes só se fale do que corre mal. Gostava de ter melhores transportes públicos no Sobralinho. Está a ler “A perdição de Dom Sancho II” de Paulo Pimentel, que trabalha na biblioteca de Arruda dos Vinhos e é pessoa que admira. Sempre quis ser professora e além das salas de aula da Labrugeira, em Alenquer, das escolas de Vialonga e Álvaro Guerra em Vila Franca de Xira, ainda esteve ligada à extinta delegação escolar.

Apaixonada pelo associativismo

Maria João Amante, natural de Alhandra mas a residir no Sobralinho, tenta manter contacto com alguns dos seus antigos alunos, através das redes sociais. Diz ficar feliz por saber que muitos conseguiram singrar profissionalmente na vida e alguns em profissões que fazem a diferença na sociedade, como jornalistas, médicos, advogados e analistas. “Não gosto de estar no sofá a ver os dias passar. Fico muito contente por ver que muitos dos meus alunos singraram”, confessa.
Aos 68 anos Maria João Amante diz não conseguir estar parada. Quando foi convidada para pertencer ao grupo de professores voluntários da leitura no Agrupamento de Escolas de Arruda dos Vinhos disse logo que sim. “Vou à biblioteca contar histórias e fazer actividades com os meninos”, conta. Em Vila Franca de Xira também esteve na Escola Álvaro Guerra a ajudar na biblioteca. Está ligada ao Coro Notas Soltas há 12 anos, é secretária da direcção do Grupo de Artistas e Amigos da Arte (GART) de Vila Franca de Xira e é presidente da mesa da assembleia-geral da União Desportiva e Cultural da Aldeia do Sobralinho (UDCAS).

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