O grande exemplo de Almerindo Marques

Duarte Marques*

“O que vale um deputado da República e a importância das Comissões de Inquérito” e “O inquérito às PPP´s e a reunião com Pinto Monteiro Procurador-Geral da República” foram os dois primeiros artigos que publiquei neste jornal na rubrica “Histórias e Enredos das Comissões de Inquérito”. Esta semana dou seguimento contando uma parte da história de Almerindo Marques que considero exemplar. Nestas crónicas, que sustento no meu trabalho político na Assembleia da República enquanto deputado e membro de cinco comissões de inquérito, desvendo os segredos de uma classe dirigente da política e do sector empresarial, supostas elites que desgraçaram o país e que colocaram em causa as actuais e futuras gerações.

Essa CPI foi aprovada a 13 de abril, presidida pelo deputado do PCP António Filipe, que também era eleito por Santarém. A escolha do Presidente da Comissão bem como a escolha do relator obedecem a um sistema rotativo entre todos os partidos. Desta vez o Relatório coube ao PSD que escolheu o Deputado Sérgio Azevedo, eleito por Lisboa, para essa função. O relator costuma ser eleito no final das primeiras três a quatro reuniões da Comissão e, normalmente, exceto nos partidos de um único deputado, deixam de fazer as intervenções dos seus partidos nos trabalhos da Comissão e limitam-se a questionar apenas alguns detalhes ou informações relevantes para o relatório final. O objetivo é sair do foco do confronto parlamentar, e tudo fazer para ser o mais equidistante possível dos partidos e o mais próximo do objetivo do relatório.”

No caso das PPP´s marcou-me especialmente uma reunião que tive num café do Largo do Rato, mesmo junto à sede do PS, com um experiente funcionário público que tinha servido em vários Governos. Jamais mencionarei o seu nome, mas chamou-se a atenção para a transformação que anos antes José Sócrates tinha feito na Lei das PPP´s e no estatuto da empresa pública IP- Infraestruturas de Portugal ( antiga Junta Autónoma de Estradas)

Os trabalhos da Comissão das PPP´s como lhe chamávamos ficaram marcados por seis audições fundamentais: o ex Secretário de Estado Paulo Campos, o “artífice” de todo este novelo, o ex-Secretário de Estado do Tesouro, Costa Pina, o ex-Ministro e agora Bastonário dos Economistas, António Mendonça, o ex-Presidente das Estradas de Portugal Almerindo Marques, o Ex Ministro das Finanças Teixeira dos Santos e Carlos Moreno ex Juiz do Tribunal de Contas.

Importa recordar que em plena crise financeira o Governo do Partido Socialista tinha decidido lançar novas concessões, tinha renegociado outras e, na véspera do primeiro PEC, apresentou o arranque do TGV. Era a loucura total que aliada ao desespero e à irresponsabilidade só podia dar asneira.

Para prepararmos estes inquéritos é fundamental um trabalho de estudo aprofundado, ler dezenas de relatórios das entidades reguladoras, do tribunal de contas e sobretudo os diferentes estudos, quer de viabilidade financeira quer sobre os diversos tipos de impactos criados. Há também uma terminologia muito específica que, em cada área, é preciso dominar e nesta CPI recordo com especial carinho a ajuda da minha colega Carina Oliveira, que era engenheira e quadro das Infraestruturas de Portugal, e nos explicou as nuances dos diversos termos técnicos do sector e da contratação pública como o “Caso base” ou “Reequilíbrio Financeiro”, a famosa taxa interna de rentabilidade (TIR), entre vários outros.

Cada um tem a sua estratégia, mas há um trabalho de investigação pessoal que é fundamental. Se no início dos trabalhos somos nós que procuramos ter acesso aos mais diversos canais de informação do sector, entre funcionários públicos ou privados, consultores, economistas ou juristas que lidaram com os temas em investigação para obter mais conhecimento. Com o decorrer das audições tudo fica mais fácil pois passam a ser essas pessoas, com informações ou alertas vitais, que num gesto de defesa do interesse público nos enviam dados, relatórios ou outros documentos. Devo deixar aqui um agradecimento a esses cidadãos anónimos que ajudaram a apurar a verdade, para deixar preto no branco que uma democracia não se faz e sustenta só com políticos.

No caso das PPP´s marcou-me especialmente uma reunião que tive num café do Largo do Rato, mesmo junto à sede do PS, com um experiente funcionário público que tinha servido em vários Governos. Jamais mencionarei o seu nome, mas chamou-se a atenção para a transformação que anos antes José Sócrates tinha feito na Lei das PPP´s e no estatuto da empresa pública IP- Infraestruturas de Portugal ( antiga Junta Autónoma de Estradas). Após a saída de Campos e Cunha, também Teixeira dos Santos não teria grande vontade de assinar de cruz as novas PPP´s de José Sócrates, Paulo Campos e Mário Lino. Costa Pina, Campos e Sócrates encontraram a solução alterando a Lei das PPP´s que no tempo de Durão Barroso tinha previsto que “qualquer PPP lançada por uma qualquer área sectorial do Governo deveria ter a assinatura do Ministro das Finanças”. Esse reforço da lei é do tempo de Ferreira Leite, Ministra das Finanças, e pretendia evitar que se assinassem acordos de parcerias de longo prazo, que comprometessem a República por muitos anos, sem o aval das Finanças. José Sócrates voltou a alterar a Lei para excecionar as “PPP´s lançadas por sociedades anónimas de capitais públicos”. Meses depois o Governo alterou o estatuto jurídico da “Junta Autónoma de Estradas que passou a ser precisamente uma “sociedade anónima de capitais públicos”. Também algumas semanas depois a IP lançou um novo conjunto de concessões em PPP …sem a assinatura do Ministro das Finanças. No fundo, o Governo “albardou o burro à vontade do dono” e fez um novo fato à medida das suas intenções, fugindo propositadamente ao escrutínio financeiro do Ministério das Finanças e ao controlo orçamental. Isto viria a ficar muito claro nas audições que tiveram lugar nessa CPI.

Umas das pessoas que mais me surpreendeu neste processo, por poder alegadamente ter alinhado em todo este esquema das novas PPP´s, foi alguém que eu muito respeitava e cuja memória respeito: o ex Presidente da RTP Almerindo Marques que, entretanto, faleceu. No dia da audição vi-o sentado no corredor de acesso às salas das comissões com um ar muito abatido. Percebi pelo seu olhar que mal me viu, quiçá resultado dos seus problemas de diabetes, e que caminhava com bastante dificuldade. Pelo enorme respeito que tinha por ele, que conheci e aprendi a respeitar enquanto trabalhei como assessor do ex Ministro Nuno Morais Sarmento, também pelo trabalho que fez na RTP, fui de imediato falar com António Filipe, Presidente da CPI. Disse-lhe que o Almerindo Marques não me parecia em condições de falar na Comissão. O camarada António Filipe disse-me logo que ia falar com ele e caso quisesse que o dispensaria da audição por motivos de saúde. Almerindo Marques recusou e logo de seguida se perceberia o porquê. Assim que se sentou e começou a falar parecia outra pessoa, falava alto, com uma energia de alguém com 18 anos, e sobretudo muito revoltado com todo o processo. A sua visão estava tão afetada que Almerindo Marques respondia a uma pessoa olhando para outra noutro ponto da mesa, mas se a sua visão estava muito afetada, a sua capacidade de raciocínio e argumentação estava como nos seus melhores tempos. Tinha sido claramente enganado. Recordo que Almerindo Marques, temendo o seu estado de saúde, fez algo quase inédito que foi prestar, por iniciativa própria, declarações para memória futura no processo de investigação que já então decorria no Ministério Público às PPPs. Mais tarde, como revelou a revista Sábado na sua edição de 16 de Maio de 2019, Almerindo Marques terá feito o tal depoimento para memória futura e contou tudo o que sabia à Polícia Judiciária. Almerindo Marques foi sempre um dedicado servidor público, esta sua denúncia terá sido o seu derradeiro serviço à República.

Duarte Marques*

*Ex deputado do PSD entre 2011 e 2022; Membro das Comissões Parlamentares de Inquérito das PPPs do sector rodoviário; Grupo BES/Grupo Espírito Santo, Caixa Geral de Depósitos, Rendas Excessivas no Sector Energético e membro da Comissão Eventual sobre a preparação do PT2030.

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