Identidade Profissional | 19-01-2022 07:00

“Venderam-nos a ideia de que a vacina resolvia tudo e que estávamos a conquistar a liberdade”

“Venderam-nos a ideia de que a vacina resolvia tudo e que estávamos a conquistar a liberdade”

Arlete Bento, 65 anos, proprietária e farmacêutica na Farmácia Flamma Vitae, em Santarém

Começou cedo a tentar descobrir qual seria a sua vocação e acabou por escolher Ciências Farmacêuticas depois de ter equacionado Direito e Medicina. Arlete Bento é farmacêutica há mais de três décadas e nunca pensou passar os dias numa azáfama a realizar testes à Covid-19 entre atendimentos. Sempre disponível para aconselhar os seus clientes, nota que são cada vez menos os que tentam levar para casa medicamentos com receita obrigatória para os quais não têm prescrição.

O telefone da Farmácia Flamma Vitae, em Santarém, passou a tocar de minuto em minuto desde que o Governo passou a comparticipar a 100% os testes rápidos de antigénio à Covid-19. Farmacêutica há 34 anos, Arlete Bento já deixou de conseguir precisar quantos testes realiza por dia, mas garante que as cerca de 100 vagas disponíveis por dia raramente ficam por preencher. “Seguramente já ultrapassamos os seis mil testes e só não fazemos mais por ser impossível”, diz a profissional de saúde que também é proprietária da farmácia.  
A conversa que decorre num sábado à noite na sala que está reservada para a realização de testes é interrompida por uma funcionária da casa que vem avisar que já chegaram os primeiros agendamentos da noite. O pequeno espaço, que passou a estar munido com um aparelho de desinfecção automática, é agora o local da farmácia onde Arlete Bento passa grande parte do seu dia de trabalho.
“Há pessoas que vêm fazer testes à farmácia só porque são gratuitos, mesmo que não tenham sintomas ou tenham estado em contacto com um positivo. Nas chamadas tentamos fazer uma triagem, mas nem sempre resolve”, diz. Alguns pedem o agendamento porque vão a um jantar de grupo, ao futebol ou visitar um utente de um lar residencial. Neste último caso, diz, compreende-se, até porque voltou a ser obrigatória a apresentação de teste embora na sua opinião não faça o menor sentido. “Venderam-nos a ideia de que a vacina resolvia tudo e que estávamos a conquistar a nossa liberdade de movimentos, mas afinal não”, afirma.
Nascida há 65 anos em Santarém no seio de uma família conservadora, receava que os pais não aceitassem a sua vontade de tirar um curso superior, o que naquela altura implicava ir estudar para Lisboa. Mas Arlete Bento não se deixou intimidar e começou cedo a tentar descobrir qual a profissão com que mais se identificava, para assim decidir por que área enveredar. Chegou a aprender pastelaria numa fábrica da região e ainda na adolescência foi assistir a julgamentos no Tribunal de Santarém.
“Achava que queria seguir Direito até ao dia em que vi um homem ser julgado por ter matado o filho bebé. Há 50 anos a juíza decidiu libertá-lo e nesse dia tive a minha decepção com a justiça”, conta. Depois disso virou-se para a área da saúde. Equacionou medicina, com especialização em cirurgia plástica, mas a ideia também foi abandonada depois de perceber, numa visita à unidade de queimados do Hospital Santa Maria, em Lisboa, que não conseguia suportar o sofrimento de crianças. E assim decidiu seguir Ciências Farmacêuticas, na certeza que iria ajudar as pessoas a cuidar da sua saúde.
Mais tarde fez uma pós-graduação em Nutrição, em que estudou a relação dos alimentos com os medicamentos e uma outra em Dermocosmética. Tem curso de injectáveis e na farmácia, além de administrar vacinas e outros injectáveis, realiza rastreios à diabetes, capilares e faz tratamentos de rejuvenescimento.
Arlete Bento abriu a sua primeira farmácia pouco tempo depois de ter concluído a sua formação, na freguesia de Almoster, em Santarém, onde “não existia mais nenhuma”. Ao fim de quatro anos decidiu trocar de local e comprou a Flamma Vitae, a sétima farmácia com alvará mais antigo em Portugal, onde também trabalham os seus dois filhos.
Papel do farmacêutico tem vindo a mudar ao longo dos anos
Com mais de três décadas de experiência na profissão, Arlete Bento não tem dúvidas de que o papel do farmacêutico tem vindo a mudar ao longo dos anos sobretudo em meios urbanos. Se no tempo em que começou a exercer o farmacêutico era quase sempre visitado antes de uma ida ao médico, agora “grande parte das pessoas liga para a linha da Saúde24”. Não quer com isto dizer, esclarece, que as pessoas tenham deixado de ter confiança nestes profissionais de saúde até porque ainda é visitada por clientes que querem receber o seu conselho. “Há uma triagem que seria sempre bem feita numa farmácia”, afirma.
Entre as situações mais caricatas, recorda a senhora com prisão de ventre em estado grave que não queria ir ao hospital nem ser medicada. “Foi uma amiga que a trouxe. Acabou por se deitar no chão da farmácia e perante essa situação vi-me obrigada a chamar o socorro”, conta.
Numa época cada vez mais digital, o “doutor Google” – como chama ao motor de pesquisa na Internet – também é muitas vezes visitado por quem se sente doente antes dos profissionais de saúde o que, vinca, nem sempre é aconselhável. Mas há um comportamento que tem vindo a melhorar com o tempo: a procura por medicamentos sujeitos a receita médica quando não se tem uma. “Aos poucos as pessoas foram percebendo que não valia a pena tentar e ficaram mais educadas nesse sentido”. A maior procura, partilha, sempre foi por benzodiazepinas, os psicofármacos presentes nos chamados medicamentos calmantes que não devem ser tomados sem terem sido receitados por profissionais de saúde habilitados para a sua prescrição.

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