Sophia Gaspar, a voz do pop/rock que vive em Coruche e quer mais do mundo da música

À beira do Sorraia, em Coruche, Sofia Gaspar conta como a música se tornou o fio condutor da sua vida. Com nome artístico de Sophia Gaspar, lidera a banda Sophia & Os Senhores Roubados e continua a lutar, com convicção, por um espaço no panorama musical português.
Sofia Gaspar, natural de Leiria, vive em Coruche há década e meia onde foi parar por amor, mas a sua história começa muito antes, entre letras rabiscadas - hoje guardadas nas notas no telemóvel - quando a inspiração surgia a meio da noite ou quando recorda a sua primeira subida ao palco em bares com 19 anos de idade.
A falta de concentração na escola foi um sinal de que o seu trajecto escolar não era para as letras ou as ciências. A sua paixão pelo desporto e pelas artes não era um acaso. Escolhia sempre o lugar da janela, numa altura em que a hiperactividade ou a falta de concentração ainda não eram um diagnóstico. Frequentou um colégio de freiras em Leiria. Lá o conselho para os pais de Sofia era o de a demover da área das artes. Tempos em que a vida era mais rigorosa.
A música sempre esteve presente e foi através dela que construiu uma carreira, feita de persistência, encontros improváveis e muito esforço. À beira do rio Sorraia, onde o som da água parece dar o compasso certo à conversa, Sofia fala da sua vida com a serenidade de quem conhece o seu lugar no mundo, mesmo que esse lugar ainda não tenha tido o reconhecimento que ambiciona.
A paixão pela música de Sofia Gaspar começou de forma inesperada, ainda jovem, quando, durante o Carnaval, as empregadas da confecção onde a sua mãe trabalhava lhe sugeriram que se mascarasse e fosse com elas ao café. Vestida de Teresa Salgueiro, dos Madredeus, decidiu cantar “O Pastor” e “Haja o que Houver”, canções que constavam num CD que lhe tinha sido oferecido por uma amiga. “Fiquei em pânico, mas como era Carnaval, ninguém iria levar a mal”, diz Sofia. Quando cantou, o café silenciou-se e, no fim da música, recebeu uma salva de palmas. Esse momento despertou nela uma paixão pela música que nunca mais abandonou.
Com 19 anos, Sofia formou uma banda de pop/rock na Marinha Grande, realizando uma média de 250 espectáculos por ano. No entanto, sentiu que precisava de algo mais e inscreveu-se nas aulas de canto no Conservatório de Coimbra. Em 2001, gravou o seu primeiro trabalho a solo “Pensa Positivo”.
O nome artístico, Sophia Gaspar, distingue a artista da mulher do dia-a-dia. Já a banda actual e de que faz parte, Sophia & Os Senhores Roubados, tem uma origem curiosa. “O nome surge porque ia constantemente buscar dois músicos ao metro do Senhor Roubado, em Odivelas. Estávamos sempre ali, à volta daquela estação, e acabou por fazer sentido”, explica com um sorriso. O grupo formou-se em 2017, juntando músicos de diferentes origens: Marco Cesário, de Almada, e José Afonso, de Odivelas. “Foi um manager que me aconselhou músicos para este projecto. Queria criar algo com tempo, com identidade, com base nas nossas influências, muito ligadas aos anos 80 e 90”, frisa a autora.
Pandemia trocou-lhe as voltas
O projecto, assente num pop/rock assumidamente moderno e sem esquecer as origens da world music, ganhou corpo e, em Janeiro de 2020, a banda lançou o primeiro single do álbum de estreia. Passou na Antena 1 e prometia abrir caminho para algo maior. Mas o destino trocou-lhes as voltas. O disco foi oficialmente lançado a 13 de Março de 2020 – precisamente na semana em que o país fechou devido à pandemia da Covid-19.
“Foi devastador. Não conseguimos apresentar o trabalho. Era um disco muito bom que ficou praticamente sem efeito. Doeu-nos imenso”, recorda Sofia. Ainda assim, a paixão pela música não esmoreceu. Em 2024 lançaram dois novos temas: “Jeito de Amar” e “Patinho Feio”. Este ano, em 2025, Sofia assume o projecto de forma mais pessoal e trouxe sangue novo: Pedro Pires na guitarra e Luís Borralho no baixo. O novo álbum foi lançado no dia 14 de Fevereiro e o single de promoção, “Fora do Tempo”, marca o início de uma nova fase.
A escrita das letras acontece muitas vezes de forma espontânea. Há dias em que a veia artística não vinga, mas noutros, como explica, a ideia surge quando está deitada e logo pega no telemóvel para apontar uma ideia. Confessa-se algo dramática nas letras, melancólica, e isso reflecte-se quando escreve. A inspiração provém de pessoas com quem se cruza, que observa ou situações do quotidiano que lhe tocam.
Sobre a crescente presença da inteligência artificial no mundo da música, é crítica. “Assusta-me um pouco. Pode ajudar-nos com ideias, claro, mas se começarmos a pedir um texto, a copiar e a fazer uma letra… onde fica a sensibilidade humana? É isso que se perde. A criatividade, o toque pessoal”, realça.
Apesar de viver da música desde os anos 90 – sobretudo a cantar em bares, o que sempre lhe garantiu sustento – Sofia ainda lida com o nervosismo dos palcos. “Os primeiros 30 segundos são de pânico. Pergunto-me sempre: o que estou aqui a fazer? Mas depois passa. E aí sinto-me em casa”, diz.
Conta com o apoio constante do marido, que a incentiva a não desistir. “Se não fosse ele, nesta fase em que estamos só a promover o álbum, ainda sem espectáculos, seria impossível continuar. É muito importante termos alguém ao nosso lado que acredita em nós”. Também os pais, embora sem ligações ao mundo artístico, sempre apoiaram a sua decisão. “Só se sabe que a minha avó materna tinha boa voz. Cantava nos campos de Leiria e chegou a ser ouvida por um senhor de Lisboa que a quis levar para cantar. Mas eram tempos difíceis. Ficou por ali”, conta.
“Coruche tem evoluído culturalmente”
Sofia gosta de viajar, ver séries e dedica-se nos tempos livres ao macramé, actividade que começou durante a pandemia. Acredita que Coruche tem evoluído culturalmente, com destaque para a Bienal da Cultura, mas defende um maior aproveitamento do auditório. “É um espaço pequeno, mas acolhedor. No Inverno, a programação cultural podia ser mais intensa”, sugere.
Sobre o futuro aeroporto, partilha preocupações. “Já é difícil chegar a Lisboa. Com o novo aeroporto, mesmo com mais pontes e estradas, temo que demore ainda mais. Por outro lado, pode trazer gente nova e isso será positivo para a economia local”, garante. Sem filhos, mas com muitos sonhos, continua a lutar pelo reconhecimento na música. “Gostava imenso que as pessoas conhecessem e gostassem do meu trabalho. Continuo a acreditar que a música tem um papel fundamental e que há espaço para todos.”
Dirigindo-se simbolicamente à ministra da Cultura, deixa um apelo: “Há que apoiar também os projectos mais pequenos. Os grandes têm visibilidade garantida. Mas há muito talento escondido que precisa de oportunidades”.