Um livro que retrata o Ribatejo de há um século
O exaustivo e diferenciado trabalho etnográfico realizado por Francisco Serra Frazão na primeira metade do século passado está agora compilado em livro graças à iniciativa de um bisneto, Luís Duarte Melo.
“Serranos, Campinos e Bairrões – Etnografia e Falares do Ribatejo” é um legado para a posteridade, repleto de apontamentos e curiosidades sobre o quotidiano da época.
“Serranos, Campinos e Bairrões – Etnografia e Falares do Ribatejo” é um livro que é também um compêndio de usos e costumes e um dicionário sobre palavras e expressões usadas no falar desta região, sobretudo na zona serrana, ao longo dos tempos, que ainda hoje perduram na memória e no vocabulário de alguns. O exaustivo trabalho de recolha realizado por Francisco Serra Frazão - um homem de cultura multifacetado que nasceu na Serra de Santo António (Alcanena) e viveu entre 1881 e 1948 – chega à actualidade graças à vasta compilação concretizada pelo seu bisneto Luís Duarte Melo, um autor natural de Santarém que se tem dedicado à investigação histórica, nomeadamente na vila de Alcanede. Daí a autoria da obra ser creditada aos dois.
O livro conta também com diversos textos de Serra Frazão escritos para jornais que são autênticos tesouros da etnografia ribatejana. As Crónicas da Borda d’Água, publicadas em O Primeiro de Janeiro entre Agosto de 1939 e Julho de 1941, são retratos de inúmeras actividades ligadas ao mundo rural, às tradições, festas e monumentos, mas também à vida social e aos fenómenos naturais frequentes, como as cheias no campo. Enumera também crendices populares e práticas ancestrais, hoje praticamente erradicadas, entre outros apontamentos a que não falta sequer uma descrição da fauna mais comum.
Outro ponto de interesse desta obra com mais de 600 páginas é a publicação de crónicas de Serra Frazão em jornais locais, como O Riomaiorense ou o Correio de Porto de Moz, e cartas dirigidas a diversas personalidades onde se torna evidente o seu fino e datado recorte literário salpicado de alguma ironia. O bisneto classifica-o como “um fino observador da realidade e cultivador das letras”, nas notas biográficas que partilha deste homem que foi jornalista, professor, administrador colonial, autarca na Câmara de Santarém e empresário, entre outras facetas.
A edição de “Serranos, Campinos e Bairrões – Etnografia e Falares do Ribatejo” contou com o apoio dos municípios de Alcanena, Benavente, Porto de Mós e Santarém. Está à venda nalgumas livrarias, nomeadamente em Santarém, e tem tido uma procura interessante, segundo o autor. “Os conteúdos, escritos há mais de 80 anos, têm um valor histórico; e, por outro lado, têm efectivamente uma cobertura dos mais variados aspectos da cultura popular da região”, diz a O MIRANTE Luís Duarte Melo, referindo que Serra Frazão era um escritor compulsivo que também foi afectado pela censura do antigo regime.
E se foi um bisneto de Serra Frazão a dar visibilidade contemporânea, em forma de livro, à vida e obra do antepassado, coube a outra descendente, a bisneta Marlene Carvalho, deixar nas notas introdutórias o seu depoimento enquanto vereadora da Cultura, em nome da Câmara de Alcanena. “Através do estudo das palavras e dos costumes Serra Frazão deixou um enorme contributo à História, à Etnografia, à Filologia e à Identidade destas comunidades, num jeito melódico, claro e fluente de escrever. Luís Melo traz-nos para o tempo de hoje esse homem, fazendo jus a uma vida de observação, investigação e sistematização, com evidência de um franco amor às origens e às pessoas”, lê-se no texto de Marlene Carvalho.
Alguns exemplos do falar serrano deixados por Serra Frazão
Deixamos aqui alguns exemplos de vocábulos usados noutros tempos pelas gentes serranas do Ribatejo com a descrição do seu significado por Serra Frazão:
Nansairo – Maneira viciosa de pronuncia a palavra necessário. Também há quem diga nascairo.
Ourejar – Arejar, sofrer moléstia ou prejuízo por virtude do ar; perder a humidade, o viço, a frescura, pela acção do ar. Deve ser modificação de arejar.
Romanchar – É encostar-se, é fazer cera, é mandriar, é escanzorrar-se para deixar passar o tempo sem fazer coisa alguma.
Sacabucho – Pronúncia modificada de saca-bucha e dá-se a este nome a um homem pequeno e fraco.
Terno – Não se trata da pedra de dominó que nos mostra três pintas, nem da carta de jogar com três sinais, nem tampouco de olhar lânguido que os Manéis botam às Marias e vice-versa. Quando os fluidos amorosos se conjugam. Terno é uma cambalhota.
Trabuzana – é a tempestade, é a noite de fortes ventanias, cuva ou pedriço, grandes charoucadas, relâmpagos iluminando tudo, os trovões ribombando ao longe, enquanto a família se aconchega tremendo em volta das brasas da lareira ou se embrulha nas grossas mantas da pancada…
Tchanga-lapanga – Espécie de onomatopeia para designar um homem molangueirão, pesadão, indolente, de andar bovino.