Três edições inesquecíveis
A provar-se que há visões a que o olhar não chega e a vista não alcança; ondas sonoras que o ouvido não capta; reconhecimentos sensitivos a que o olfacto, o gosto, o tacto se revelam incapazes de aceder, razão não faltará ao entendimento humano, firmado na oralidade e na palavra escrita, para reclamar condições, para se preocupar com esclarecimentos que lhe são exigidos pelo intelecto, sob pena de subtrair ao inteligível a desejável descodificação dos conteúdos apresentados.
A provar-se que há visões a que o olhar não chega e a vista não alcança; ondas sonoras que o ouvido não capta; reconhecimentos sensitivos a que o olfacto, o gosto, o tacto se revelam incapazes de aceder, razão não faltará ao entendimento humano, firmado na oralidade e na palavra escrita, para reclamar condições, para se preocupar com esclarecimentos que lhe são exigidos pelo intelecto, sob pena de subtrair ao inteligível a desejável descodificação dos conteúdos apresentados.
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1. Antecipando uma modernidade distante, e a braços com as limitações próprias da conjuntura histórica de que será, sem dúvida, primeira pedra da portugalidade, nascida no contexto ibérico de então, a ascensão d’Os Lusíadas a obra de incomparável valor (de valoridade, também) epocal no âmbito do florescimento das humanidades - alicerce civilizacional de um mundo à beira de beneficiar do processo discursivo com que o Renascentismo abriu portas à Europa futura, libertando-a da tendência crepuscular que a Idade Média prolongou adiando a mudança possível – veio demonstrar que a epopeia camoniana não apenas consagrou a História da Europa como alavanca da mundividência europeia, como foi eco do ideário nacional, enquanto cruzada dos ideários religioso e humanístico que lhe subjazem, e ainda enquanto combinação original da “língua culta da latinidade com a língua tradicional oral”.
Entendido como “manifesto da civilização ocidental” e como epopeia “dos feitos da famosa gente” portuguesa que, dando novos mundos ao mundo, viria a deixar a alma lusa pelo mundo em pedaços repartida, o projecto camoniano mereceu, da parte de António José Saraiva (1917-1993), o estudo, a dedicação, o desfrute dos primores da língua portuguesa, nunca antes empreendidos, justiça seja feita, segundo o exilado académico - dos mais perseguidos pelo salazarismo, sublinhe-se, em abono da verdade – avesso ao apanágio dos “eruditos e escolas”, a não ser, conforme elucida, por António Ferreira (1528-1569), do qual, no entanto, o autor de Inquisição e Cristão Novos (1969) se afastou por considerar haver “razões de excesso do classicismo racional” do meritoso seiscentista.
2. Da comemoração dos 500 anos do nascimento de Camões para os 50 anos da Revolução de Abril - tomando o zero como símbolo do “intervalo entre gerações”, ovo cósmico “símbolo de todas as potencialidades” - destaque para a edição de Maquiavel e Outros Estudos (Editora Paisagem, Porto, 1975), de Jorge de Sena (1919-1978), conjunto de ensaios e artigos dedicados “a génios famosos ou escritores importantes que influenciaram o curso das ideias”, de Maquiavel a Malraux, passando pela abordagem da obra de autores incontornáveis como Shakespeare e Rousseau, ou pela análise crítica d’0 Capital, de Karl Marx, expoentes de excepcional valia tratados em estudos visados pela censura ou tirados da gaveta na sequência da liberdade de expressão ideológica (pensamento e cidadania) recuperados pela/ em democracia, meio-século depois, do derrube da Ditadura.
Segundo Jorge de Sena, o mais culto de entre os grandes vultos do séc. XX - sentenciado com a Ordem da Falta de Liberdade, durante o fascismo, e com o absentismo hipócrita dos intelectuais a quem fez sombra nos escassos anos, que viveu depois de Abril, e daí em diante, como se pôde ver na comemoração do centenário do seu nascimento - a edição de Maquiavel e Outros Estudos mais do que a reflexão crítica no domínio da ”história das ideias” protagonizada por grandes nomes da cultura europeia (nas letras, artes, política, filosofia), representa, em toda a linha, e como reconhece o próprio, autor do mais extenso (e douto) acervo de obras com projecção internacional, quer literária, quer ensaística: “chave para a compreensão dos séculos XVI e XVII europeus, dos quais a nossa vida tão directamente continua a depender na história e na cultura”.
3.Para fechar, e como prémio de distinção bibliográfica para cultores de eleição (e de primeiras edições), memória editorial para uma das obras mais celebradas pelos poetas portugueses do final dos anos 60, retábulo da poesia de todos os tempos & lugares (do Antigo Egipto ao Cântico dos Cânticos; da Poesia Maya à Poesia Mexicana do Ciclo Nauatle; do Hino Órfico à Noite aos Poemas Zen) em versão livre de Herberto Helder (1930-2015), até hoje lembrada com o título emblemático de O Bebedor Nocturno (Portugália Editora, Lisboa, 1968), na sua colecção Antologias Universais.
É que, como ao leitor, também ao poeta, quando investido dessa missão impossível que é traduzir poesia de/e para qualquer idioma, acontece ter de imaginar a tradução como estranha forma de vida - segundo o poeta de Servidões (2013): “acrobática e centrífuga de um poliglota” do tradutor/ traidor.