Livros que São Vidas | 20-07-2024 08:56

Três livros que abalaram o mundo (português)

Três livros que abalaram o mundo (português)

A tempo de fixar historicamente o que os anos do império relegaram para mais tarde, três livros anteciparam a História do Portugal de então, interrompendo o fluxo de mobilização colonizadora desencadeado a partir da conquista de Ceuta (1415) e da descoberta do caminho marítimo para Índia (1497-1499).

A tempo de fixar historicamente o que os anos do império relegaram para mais tarde, três livros anteciparam a História do Portugal de então, interrompendo o fluxo de mobilização colonizadora desencadeado a partir da conquista de Ceuta (1415) e da descoberta do caminho marítimo para Índia (1497-1499) até ao dia em que o regime foi abalado pelo levantamento em armas: primeiro com a invasão de Goa; depois, com a luta armada instaurada, a partir dos anos 60, em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

Apesar do esforço diplomático exercido pelas elites independentistas, acção dirigida por intelectuais, nascidos ou destacados para missões administrativas nos territórios coloniais (vulgo províncias ultramarinas), o que é certo é que o Estado Novo (a que se seguiu o consulado marcelista) não se dispôs a viabilizar conversações capazes de evitar 14 anos de guerra, lançando o povo português no confronto inglório a que só o Movimento dos Capitães de Abril havia de pôr cobro, ao abrir portas, não à recomendável autodeterminação implantada, a seu tempo, noutras paragens coloniais, mas à proclamação de independências fragilizadas pela precipitação de acontecimentos agravados pela internacionalização dos conflitos internos a que se seguiram situações de prolongada guerra civil.

1.Reflectindo o grau de consciencialização vivido nos períodos, que antecederam a guerra colonial, por parte dos intelectuais que, perseguidos pelo regime salazarista, julgados e a cumprir pesada penas nas prisões portuguesas e “campos de concentração” coloniais construídos para o efeito, ou na clandestinidade, a literatura ultramarina nem por isso deixou de denunciar a opressão, subalternização dos ideários artísticos, culturais e linguísticos de raiz nacionalista por parte da potência colonizadora, dando à estampa obras fundadoras dos países, onde a lusofonia viria a florescer abrindo caminho à constituição das literaturas africanas de expressão portuguesa que, na actualidade, representam os respectivos povos no seio da CPLP.

2. Na impossibilidade de proceder ao levantamento das obras que abalaram o regime, quer na metrópole (designação saudosista do tempo das madrinhas de guerra), quer nas províncias ultramarinas (designação passadista dos territórios para os quais se e/migrava com carta-de-chamada), pendão literário para a edição de Luuanda, de Luandino Vieira (Edição composta e impressa nas Oficinas Gráficas ABC, Luanda setembro de 1964), a mais emblemática das obras que incomodaram Portugal (e o regime salazarista) por ter desencadeado a barbárie que levou a Polícia política a saquear e encerrar a Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), e a con/firmar a condenação do autor, sentenciado por “traição”, a 14 anos de prisão no Tarrafal, depois de submetido, na qualidade de “terrorista”, a duros interrogatórios, na sequência do 4 de Fevereiro luandense e na eclosão da luta armada no Norte de Angola.

Constituído por apenas três das 10 estórias originais, porque assim o exigia o regulamento do Prémio Literário M.ª José Abrantes da Motta Veiga com que as mesmas foram distinguidas, - lê-se no cólofon da 1.ª edição - Luuanda elege o antigamente na vida luandense como espaço de denúncia (centrado no imaginário, acção e falas) do tempo em que a cidade e a infância do autor, à espera de melhores recordações, prometia dias felizes ao povo que “chatiado c’oa vida” verdadeira ia “muxuxando na desculpa” de não ser dono da sua terra.

3. De Angola para Moçambique, tempo favorável para retirar do esquecimento esse marco literário que dá pelo título de Nós matamos o cão tinhoso (Edição composta e impressa pela Sociedade de Imprensa de Moçambique, Lourenço Marques, 1964), de Luís Bernardo Honwana, metáfora da condição a que o colonizado fora sujeito desde tempos imemoriais, tantos quantos os anos em que as palmas d’As mãos dos pretos (a novela mais conhecida) passaram “a ser claras”, porque – dizia um mestre-escola da época – andavam “com elas apoiadas no chão”.

4. Por último, mas nem por isso de menor impacto no processo de libertação que, precedeu a independência dos países lusófonos, ou de expressão em língua portuguesa, honras literárias para a edição de Famintos (edição brasileira, 1962), de Luís Romano (Ponta de Sol, Cabo Verde, 1922 – Rio de Janeiro, 2010), saga do povo ilhéu, obra fundadora do crioulismo cabo-verdiano, surgido com a geração da revista Claridade (símbolo da caboverdianidade fixada no arquipélago na década de 30 do séc. XX), cujos autores ficaram conhecidos pelo nome de “claridosos”, e de que a obra mais emblemática continua a ser Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes (1907-1989), é porventura, expoente.

Tendo como plano de acção levar aos 4 cantos do mundo a fraternidade do grito silenciado pela fome de um povo a que, anos de seca, na sequência da II Guerra Mundial, cavaram sepultura, Famintos abre a mais ousada frente de combate ao conluio com que administradores da instituição Socorros Mútuos Públicos, igreja católica, funcionários coloniais e comerciantes contribuíram para agravar o flagelo da insularidade, a ponto de fazer do povo cabo-verdiano (e dos chamados americanos, emigrantes regressados à terra-natal) simples “coisificação”, termo assinalado por Aimé Césaire em Discours sur le colonialisme (Paris, 1950).

“Esta gentalha do Povoado precisa de ser liquidada”, dizia-se à boca-cheia, na época em que o autor de Famintos decidiu partir para o exílio sem ter tempo de celebrar a hora di bai com a terra dos que, considerados “cadáveres ambulantes”, não mereciam piedade por parte dos colonos que com eles nunca tiveram “tempo a perder”.

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