O MIRANTE dos Leitores | 19-12-2022 18:00

“Um escalabitano atípico”

“Um escalabitano atípico”
Rui Jacinto. fotoDR

O texto “Estamos sempre a pisar o mesmo chão”, de JAE, mostrou-me o que não aprendi em quase 18 anos de vida em Santarém.

O texto “Estamos sempre a pisar o mesmo chão”, de JAE, mostrou-me o que não aprendi em quase 18 anos de vida em Santarém. Nascido na cidade, “Bairro dos Macacos”, foi com dias ou semanas que os meus pais se mudaram para uma ruela esburacada, empoeirada no Verão e enlameada no Inverno. De um lado casas, do outro uma pequena seara, a oficina do Gouveia e o campo de futebol dos Leões de Santarém. Para uma família humilde e sem raízes à cidade era, no início da década de 40, o paraíso. A garotada inventava como desperdiçar o tempo e romper os calções, falava de touros e futebol, ia a pé para a escola do Pereiro e aos 15 ou 16 anos começava a trabalhar. Não no que tinha sido ditado pelos sonhos de criança, porque os não teve, mas na primeira oportunidade: na oficina, loja, sapateiro ou barbeiro. Ou pior para alguns a que não restou senão o campo ou a construção civil.
Com 17 anos eu era trabalhador da casa “Oliveira, Lda”, diziam que era aprendiz de electricista. Um dia os trabalhadores foram convocados para ouvir o senhor Oliveira (pai).
De uma assentada ele “despediu” meia oficina, mas não sei porquê fiquei.
Eu, além de atípico, porque não jogava à bola, não gostava de touros nem me metia nos copos, criei um sonho: trabalhar em electrónica, e no sonho, seria num grande laboratório.
Sem recursos, graciosamente o Dr. Florindo ensinou-me Física e Matemática; o senhor Pais, um oficial telegrafista da Marinha Mercante, que ia passar os tempos livres à cidade, irmão de uma senhora que era secretária no Governo Civil, esclareceu-me algumas dúvidas e “obrigou-me” a aprender inglês.
Em Julho de 1959 fui o primeiro classificado ao lugar de técnico no laboratório de electrónica da Philips. Na sequência e em resultado do exame (10 respostas certas em 10 perguntas), ao fim de algum tempo a empresa decidiu investir na minha carreira por sua conta e risco. Durante 3 anos dividi o tempo entre Lisboa, Eindhoven e Cambridge. As despesas foram integralmente suportadas pela Holanda e eu recebia o meu ordenado por inteiro (e hoje 2022 recebo a reforma).
Como um escalabitano atípico, vivendo fora de Portugal, fui gestor de área para os países do ME&A, e para fim de carreira director da empresa em Lisboa. Há anos, num encontro casual de férias no Algarve, dizia-me o Coronel Correia Bernardo “pois, desapareces-te, sempre pensei que com essas tuas ideias da engenharia tinhas ido para fora”.
De facto, não todos, mas dos 38 anos como trabalhador da Philips, de papel passado, 20 foram dedicados à tecnologia, os outros 18 à gestão, e recebi 2 Omega em ouro. Claro que teve custos. A minha mulher abdicou da sua carreira, quase não vi crescer a filha, passei fome no Japão por não gostar da comida, estive a “assar” em fato de fazenda na estrada entre o Dubai e Abu Dhabi, comi miolos de cabra crus em Ancara para cumprir a tradição, e viajei de carro sem ar condicionado entre Luxor e Nag Hamadi, para apenas referir algumas das minhas cenas do quotidiano, a que acrescento um parabéns a você em português da Índia no escritório de Abu Dhabi (Março de 198?). Mas perdi o contacto com os amigos de juventude, o convívio com familiares, vendi o apartamento onde faleceram os meus pais e encerrei o tema Santarém, mas com mágoa, hoje seria o cliente mais antigo do Xiquinzena.
Conheci o mundo, vivi intensamente a alta tecnologia numa trajectória transversal entre a válvula electrónica até quando virou digital, o leitor de CD ou a fibra óptica, ou os primeiros computadores DEC. Com o “low profile” que sempre me caracterizou senti imenso orgulho pela carreira que vivi, fiz jus à educação e bons exemplos que recebi dos meus pais, também pela família que constitui. Fui um trabalhador esforçado quase a roçar o “workaholic”, mas fui muito feliz trabalhando.
Leitor/assinante de O Mirante, 42515
Lisboa, 221103

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