O MIRANTE dos Leitores | 30-10-2023 10:00

Dois velhos transgressores e a passageira sem dístico

A GNR desenvolve ações (para as televisões?) a favor dos idosos, mas eles que se cuidem porque, na primeira esquina, serão tratados sem dó nem piedade pela sua idade.

Conheço quem não queira usar bengala, para não dar parte de fraco: não é o meu caso porque ainda não senti essa necessidade. Mas, vou confessar: os 85 começam a pesar e, por vezes, já procuro algumas facilidades. Qual é a máquina que consegue trabalhar, sem parar, 85 anos seguidos? Tem de estar gasta.
5 de Outubro de 2023. Fomos (eu e a minha mulher) almoçar à Sertã, pois estávamos por ali perto: temos uma 2ª habitação situada no concelho de Mação, distrito de Santarém, nos limites dos três concelhos: Mação, Sertã e Vila de Rei. Saímos do restaurante e fomos ao supermercado do senhor Belmiro de Azevedo (que Deus, nosso Senhor o tenha por lá em descanso, sem mim, por mais uns tempos!) comprar o almoço do dia seguinte. Dia feriado, hora de almoço, muito calor, parque de estacionamento vazio, naturalmente. Quatro lugares para deficientes, os mais próximos da entrada, sem alma viva, que é como quem diz, sem qualquer cliente deficiente por perto, como acontecia com os sãos.
Contrariando a mente, que não o quer admitir, cedi às queixas do esqueleto e concedi-lhe aquela pequena benesse: deixar o carro ali à mão, por uns momentos, com a minha mulher lá dentro (82 anos e mais de 90% de incapacidade, só se deslocando de andarilho, bem visível no banco traseiro. A qualquer autoridade, perante uma pessoa de 82 anos, passageira, bastava um niquinho de sensibilidade para fazer uma análise correta da situação porque a lei foi feita para o homem e não o homem para a lei. Quando passa a ser o contrário: cuidado, temos novos tempos de recessão, democrática!
Quando saí do carro a minha mulher viu um jeep da GNR, em frente, e um agente à fala com um ciclista (seria? motociclo? Assim me foi relatado), que estaria num dos lugares dos carros, mas, na sua inocência, incauta, não me alertou do perigo que corríamos, ela e eu, às mãos dos protetores dos velhinhos. Claro, depois do ciclista (?) foi a sua vez de ser abordada: se era deficiente, se tinha dístico, se o tinha pedido (será normal as autoridades interrogarem os passageiros sobre questões que são da exclusiva responsabilidade do condutor?) se sabia que aquele local era para deficientes, com dístico... Que teria ela a ver com isso? Não seria assunto a tratar com o dono do carro ou condutor? No estado em que a sua pobre cabeça se encontra, tão preocupante ou mais do que o estado físico, imagino o susto...
Regressei e dou logo com o jeep. Esperara por mim. O mesmo interrogatório, se sabia que a multa era pesadíssima... etc. E o professor de filosofia, que gosta de tudo isso, ficou sem palavras nem argumentos, qual cordeiro em frente do lobo, que tinha tudo a seu favor: o porte, o livro de cheques (que não é barato), algemas.... era de deixar encolhido até o musculado carneiro-chefe do rebanho. E eu nem o livro baratucho, que há muitos anos escrevi sobre o estacionamento caótico em Lisboa (ironia do destino!), tinha para lhe propor e tentar desviar a conversa... que, aliás, não existiu! Cenas do quotidiano, não para mais tarde recordar, porque para mim não haverá mais tarde, mas apenas para deixar no papel, e alguém, também com um suspiro, possa repetir comigo e com um célebre político (ainda no ativo, bem alto): c’est la vie!
Àquela hora, uma mulher que terá apresentado queixa por violência doméstica estará a ser morta pelo marido, amante, companheiro, namorado, por falta de vigilância e socorro, a par de tantas outras situações gravíssimas do quotidiano a necessitarem da intervenção e ajuda dos valentes e briosos homens e mulheres desta prestigiada força de segurança. Valentes, porque a cada passo arriscam as suas vidas para cuidar das nossas. E, ali, alguém perdia um tempo precioso, num dia como aquele, num parque de estacionamento duma empresa privada, a tratar de um ciclista (?) e de dois octogenários, que não prejudicavam nem incomodavam quem quer que fosse... Demagogia? É uma forma fácil de justificar o injustificável. É serviço? Será. Interrogo-me se a ordem de serviço daquele feriado, 5 de Outubro, incluía tal bizarria?
(...)
A janela estava aberta e a minha mulher ouviu alguém dizer que não eram dali; que eram de Castelo Branco. A GNR desenvolve ações (para as televisões?) a favor dos idosos, mas eles que se cuidem porque, na primeira esquina, serão tratados sem dó nem piedade pela sua idade, pelo seu estado físico, pelas más circunstâncias em que se encontrem, quais crianças mal comportadas, com ralhetes à mistura e com a promessa de uma multa pesadíssima no caso de voltarem a serem encontrados com a colher estacionada dentro do frasco da compota...
Decididamente, este país não é para velhos, que são tão maltratados. Ouve-se todos os dias. (Este é apenas um caso benigno suportado com algum humor). E para os jovens também não: tratados com muito amor: no discurso! Mas os velhos já não podem fugir, como eu fiz quando tinha a sua idade. Como eu os compreendo!
Jvicente
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