“Aprender música requer tempo e força de vontade principalmente nestes tempos de imediatismo”
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A pandemia silenciou as bandas de música mas não vai conseguir acabar com o trabalho que a Sociedade Filarmónica de Santo Estêvão desenvolve. É uma casa de cultura com um passado exemplar e um futuro promissor. Os últimos anos têm sido de crescimento constante e a aposta assenta numa ligação frutuosa com a comunidade.
Como estão a conseguir lidar com as restrições impostas pela pandemia?
Não fosse a pandemia e estaríamos a passar um momento muito bom. A parte musical é a nossa coluna vertebral, quer com a banda principal quer com a banda juvenil e a escola de música. A escola ainda se consegue manter em funcionamento através de aulas online, mas o resto não tem sido nada fácil.
O que estava a contribuir para esse bom momento?
Desde que o maestro João Raquel chegou que tem imprimido uma dinâmica muito forte na nossa colectividade e levou mesmo a nossa banda juvenil a conquistar três prémios internacionais. Estávamos efectivamente num percurso ascendente.
Do ponto de vista da gestão como está a associação?
Está bem gerida e equilibrada. Estamos bem, embora financeiramente este ano esteja a ser mais complicado. Eu dou a cara, mas não faço aqui nada sozinho. Somos todos uma equipa: direcção, maestro, músicos, alunos. Só se consegue vencer com uma boa equipa. Somos um grupo unido onde todos têm um papel de destaque.
É músico, toca clarinete e agora é presidente da direcção. Isso ajuda a gerir uma casa destas?
Sou presidente da direcção embora tenha sido eleito para vice-presidente. Assumi as funções devido ao afastamento por problemas de saúde do presidente. Mas não acho que ser músico seja uma vantagem ou facilite o trabalho. Todas as decisões são tomadas em equipa. Em 2018 iniciámos uma campanha de angariação de fundos que ainda se mantém por causa da pandemia e investimos 20 mil euros na renovação de instrumentos. Temos conseguido ter muitos miúdos na escola de música e tem sido preponderante o bom trabalho que eles têm desenvolvido. É nessa escola que se constroem os bons músicos.
A história da associação é um pouco difusa e assenta em três “fases”. Oficialmente foi fundada a 31 de Outubro de 1974 mas sabe-se que existiu pelo menos desde o final do século XIX, antes de ter fechado portas, reaberto novamente nos primeiros anos do século XX e encerrado novamente até ser reaberta em 1974.
Foi um feito as gentes da terra terem conseguido recomeçar a actividade da associação do zero. Na altura os meus pais incentivaram-me a vir para cá. Hoje em dia é diferente, a maioria dos miúdos quer vir para cá, ou porque tem aqui amigos ou porque os pais também acham que é boa ideia que eles aprendam música. Saber tocar um instrumento e saber música é uma mais-valia imensa. No caso das crianças ajuda na concentração, no raciocínio e na postura perante os outros. Aqui não formamos só músicos, formamos acima de tudo boas pessoas. Ensinamos respeito, responsabilidade, a assumir o papel de cada um na sociedade e dar o seu contributo. Isso ajuda os mais novos na sua vida futura.
Quando crescem, alguns passam a ter menos tempo para se dedicarem à banda...
Sem dúvida. Todos os músicos aqui são voluntários e não recebem um cêntimo. É tudo por amor à camisola e à paixão de produzir música. O que tento sempre apelar é para que os jovens se mantenham ligados à música, seja com maior ou menor dedicação. É um óptimo escape para as vidas complicadas que temos no dia-a-dia. A música liberta-nos e dá um gozo extraordinário produzir música em conjunto. Acima de tudo é a paixão pela música que deve prevalecer.
Um ambiente quase familiar é fundamental para manter toda a gente na associação.
É isso mesmo. Aqui somos como uma família, há um ambiente muito bom e é isso que nos faz querer voltar e estar cá. Queremos ao mesmo tempo levar o nome de Santo Estêvão o mais longe possível e promovê-lo de forma positiva. E gostamos que os pais também percebam que, nos mais novos, os estamos a formar com competências não apenas musicais mas competências para que se possam revelar bons adultos no futuro.
O associativismo tem futuro?
Acredito genuinamente que tem futuro e faz todo o sentido. Esta nossa função só faz sentido de uma forma: quando nos sentimos bem a fazê-la. É uma função descomprometida de outros interesses. Estamos no associativismo pelo gozo de fazer algo pela nossa comunidade e pelas nossas gentes. Esse é o nosso maior prémio: ver o que estamos a entregar a toda a nossa comunidade. Isso dá-nos a todos imenso gozo.
São uma associação que gosta de estar próximo das gentes da terra. Além da música promovem outros eventos?
Costumamos fazer iniciativas na comunidade como a noite da gula, só com doces e licores, e estaríamos agora nos preparativos para o nosso festival das sopas que, sem modéstia, é dos melhores festivais de toda a região. Quem nunca experimentou, um dia terá de nos visitar. Temos feito um bom percurso e as pessoas da terra reconhecem isso.
Esses eventos além de aproximar a comunidade ajudam também como fontes de receita.
Somos das colectividades mais dinâmicas do concelho de Benavente com uma abrangência muito grande. A base do nosso orçamento são os apoios fundamentais da Câmara de Benavente e da Junta de Freguesia de Santo Estêvão. Depois vivemos das quotizações dos nossos associados, das mensalidades dos alunos da escola de música e das receitas que realizamos nos vários eventos que promovemos. Por causa da pandemia, financeiramente as coisas estão muito apertadas neste momento. Estamos focados em sobreviver até que este vírus se vá embora.
A pandemia pode ser uma oportunidade para as associações se reinventarem?
O segredo para manter as associações vivas é a reinvenção constante face aos desafios que aparecem. A pandemia não veio criar qualquer oportunidade e vai deixar feridas que demorarão tempo a sarar. É saber colar tudo com adesivos e esperar que se aguente durante a tempestade. O que estamos a viver agora não é vida para uma associação como a nossa. Precisamos de começar a tocar. Não se pode prolongar esta situação muito mais tempo.
Como se leva os jovens a interessarem-se pela aprendizagem da música?
Temos de saber criar laços e fazê-los sentir que têm aqui uma segunda família. É a única forma. A música tem um contratempo grande hoje em dia. Actualmente é tudo muito rápido. Um miúdo torna-se mestre num jogo novo ao fim de poucas horas. Querem tudo rápido e imediato. Na música não é assim. A pessoa pode ser mais ou menos dotada, mas a música é sempre um percurso lento e isso choca com os tempos actuais muito centrados no imediatismo.
Um jovem que aprende música, mesmo que não siga a carreira de músico, fica melhor preparado para a vida, de que maneira?
Costumo dizer aos empregadores para, nas entrevistas de emprego, tentarem saber se têm à sua frente um músico. Isto porque os músicos têm muita resiliência e força de vontade. Está inerente à aprendizagem do instrumento e da pauta.
Qual o futuro da Sociedade Filarmónica de Santo Estêvão?
Acredito que o melhor está para chegar, logo que a pandemia nos abandone de vez. Temos noção da responsabilidade que a chegada do maestro João Raquel trouxe à nossa casa. Sabemos que somos hoje uma das principais, senão a principal, filarmónica do concelho de Benavente. Tudo fazemos e iremos fazer para representar bem o nosso concelho e Santo Estêvão. Nunca me canso de dizer que o nome desta colectividade não está em evidência pelo trabalho da direcção e do maestro, mas sim por todos os que aqui estão: músicos, actores, pessoas da comunidade que nos ajudam com regularidade. Há um conjunto vasto de pessoas dedicadas a esta casa. Somos um único grupo, unido e coeso. É isso que gosto de sentir. É o todo que faz a colectividade grande.
Uma colectividade que resistiu a duas extinções por ter raízes bem fortes
A Sociedade Filarmónica de Santo Estêvão foi oficialmente fundada a 31 de Outubro de 1974 mas as suas raízes são centenárias. Sabe-se que terá tido uma primeira existência no final do século XIX, tendo fechado portas e reaberto nas primeiras décadas do século XX, até se ter extinto novamente no tempo do antigo regime.
Após a revolução de 25 de Abril de 1974, um grupo de amigos meteu na cabeça a ideia de voltar a reactivar a associação e deslocou-se a Lisboa para tentar angariar instrumentos para começar a ensinar música aos jovens da terra. O trabalho deu frutos e com a ajuda da comunidade em poucos meses a associação conseguiu arranjar dinheiro suficiente para pagar os instrumentos que adquirira, quase sem ter dinheiro, e a filarmónica manteve-se de portas abertas e a crescer até aos dias de hoje.
A banda principal, liderada pelo maestro João Raquel, tem 37 músicos. A banda juvenil, que integra alunos da escola de música, tem 25 músicos. A associação tem também uma escola de música onde duas dezenas de jovens aprendem pauta e instrumento. A colectividade tem uma secção de teatro com duas dezenas de actores da região e conta actualmente com 300 sócios.
Entre os primeiros alunos da nova escola de música, fundada em 1974 pela sociedade filarmónica, estava António José, mediador de seguros que hoje, aos 55 anos, é também o presidente da colectividade. Toca clarinete na banda principal e é actor no grupo de teatro nos tempos livres.
Situada na rua Manuel Martins Alves, a sociedade filarmónica é um pólo de dinamização cultural naquela localidade mais a norte do concelho de Benavente e tem conseguido nos últimos anos atrair dezenas de jovens. O empenho dos mais novos e do maestro que os lidera já resultou em três prémios mundiais, dois deles alcançados este ano em plena pandemia. O primeiro, em Janeiro de 2021, foi conquistado em Dresden, na Alemanha, onde o grupo trouxe para a região a medalha de bronze no festival internacional “Winter Stars of Dresden”. Em Fevereiro a banda juvenil venceu o Copenhagen Stars 2021, na Dinamarca, enfrentando mais de 600 bandas de vários países. Já antes a banda juvenil havia ganho, em Março de 2019, o primeiro prémio no Concurso Internacional de Bandas Juvenis “Memorial Francisco Fort”, organizado pelo Centro Artístico e Musical de Moncada, Valência, em Espanha.