O MIRANTE | 03-03-2022 16:00

Elvira Fortunato: um país que não investe em ciência é um país que aposta no fracasso

Elvira Fortunato vai ser a nova Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

Elvira Fortunato é um dos cérebros mais valiosos do nosso país. A professora, inventora e cientista tem acumulado prémios ao longo da sua carreira, sempre ligada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Com raízes na aldeia da Louriceira, em Alcanena, diz que a ciência merece mais atenção dos governantes.

Sente-se uma espécie de Cristiano Ronaldo da ciência portuguesa ou a questão deveria ser formulada ao contrário, rotulando o jogador como a Elvira Fortunato do futebol nacional?
Isso é incomparável. Não chego aos calcanhares do Cristiano Ronaldo…
Não é excesso de modéstia da sua parte?
Não. Tenho feito um bom desempenho mas não um desempenho a nível internacional como o do Cristiano Ronaldo. Ele é o melhor do mundo no futebol e eu não sou a melhor do mundo em termos científicos. Eu sei no patamar em que me situo.
Mas é a melhor na sua área da ciência.
Sim, nesta área sou uma das melhores.
Qual foi a descoberta que a deixou mais encantada?
Foi o transístor de papel, na área da electrónica de papel. Para fazermos electrónica precisamos de transístores. E para fazermos os transístores precisamos de materiais condutores, como os metais; metais isolantes, como o papel ou outro material; e materiais semi-condutores. No transístor de papel substituímos o material isolante pelo papel, pela celulose, e conseguimos, no fundo, utilizar um material completamente diferente. Habitualmente era usado o óxido de silício.
É uma cientista habituada a receber distinções. Qual foi o melhor prémio que a vida lhe deu até hoje?
Houve um que me sensibilizou bastante: o ano passado ou há dois anos fui homenageada pelo Governo do Chile, no caso pelo Embaixador do Chile em Portugal. Eles têm um prémio com o nome do navegador português Fernão de Magalhães que me atribuíram para celebrar os 500 anos da descoberta do Estreito de Magalhães e, além disso, plantaram uma árvore com o meu nome numa floresta chilena que se chama Fernão de Magalhães.
E quando é que vai lá visitá-la?
Quando puder. Nunca fui ao Chile e tenho muito interesse e curiosidade em ir ver uma árvore com o meu nome. Achei esse prémio completamente diferente de todos os outros que tenho recebido ao perpetuarem o meu nome numa floresta chilena.
E o prémio que gostaria de receber já amanhã?
Gostava que nos víssemos livres desta pandemia e deste vírus que nos tem afectado ao longo destes últimos dois anos. Era o melhor prémio que me podiam dar.
Conviveu mal com a pandemia?
Acho que convivemos todos mal, pelas incertezas, pelos problemas que nos trouxe a nível profissional, económico… Afectou-nos o trabalho, atrasou alguns projectos, mas mesmo assim temos tido alguma compreensão por parte das agências financiadoras; seja nos projectos em que podemos pedir extensão de mais algum tempo para finalizar, seja até de alunos de doutoramento que tiveram extensão nas bolsas para concluir o doutoramento. Porque o trabalho de laboratório, o trabalho de bancada, não se pode fazer em teletrabalho.
A ciência tem tido muito espaço mediático nestes tempos de pandemia. Acha que é um fenómeno conjuntural?
Acho que sim. A Covid trouxe muitas coisas más, mas uma das coisas boas que deixou foi pôr a ciência em cima da mesa. Hoje é normal que qualquer cidadão comum tenha consciência da importância que a ciência tem, como se viu, ao criarem-se vacinas num espaço de tempo muito curto. A Covid alertou para isso e, hoje em dia, as pessoas sabem mais de ciência porque aparece mais nos meios de comunicação social. Se a ciência chega a casa através dos jornais ou da televisão, a pessoa informa-se e fica mais interessada e culta sobre a matéria.
Apesar dos acelerados avanços da ciência há coisas que a mesma ainda não conseguiu comprovar como a existência de Deus. É uma mulher de fé?
Não se conseguiu provar que existe Deus, nem se conseguiu provar que não existe. Mas sim, tenho fé. Costumo ir a Fátima, até porque a minha família vive lá perto, na Louriceira. Quando consigo atingir sucessos grandes, seja a nível profissional ou familiar, gosto de ir a Fátima.
É casada com um colega de trabalho, o professor e investigador Rodrigo Martins. Costumam levar o trabalho para casa ou a ciência fica à porta?
Nem a ciência fica à porta de casa, nem a vida familiar fica à porta do laboratório. Isto não é um trabalho das nove às seis. Acima de tudo, nem é um trabalho é um gosto. É uma forma de estar na vida. E a forma de estar na vida é igual, seja aqui no laboratório ou em casa. É normal que se fale em projectos quando estamos em casa, assim como é normal que se fale de outras coisas da vida no trabalho.
A vossa filha seguiu as vossas pisadas?
Está a tentar seguir. Não exactamente nesta área, mas sim na da biotecnologia. Nunca a quisemos influenciar, todas as escolhas que fez foi por ela própria. Mas acaba por ser um bocadinho difícil para uma pessoa que vive neste meio, que viajou muito connosco para congressos e acabou por contactar com essas experiências lá fora, alhear-se desta realidade. É uma riqueza que ela também acabou por partilhar e, neste momento, vai candidatar-se a doutoramento e quer seguir a área da ciência.
A aldeia de Louriceira, em Alcanena, continua a fazer parte do seu mapa afectivo?
Completamente! Vamos lá com alguma regularidade, ainda lá tenho uma tia e temos lá casa. Habitualmente passamos lá o Natal mas nos dois últimos anos, devido à pandemia, isso não aconteceu. Mas fiz com que a minha tia viesse cá, foi a Louriceira que veio a Almada.
As verbas no Orçamento de Estado para a investigação e ciência reflectem o quê da nossa classe governante?
Deviam ser maiores. Há uma meta, que este Governo e a própria Comissão Europeia estabeleceram, para que em 2030 se atinja 3% do PIB para a ciência. Neste momento, em Portugal, estamos com 1,5%.
Acredita nesse ‘milagre’?
Temos mesmo que chegar a essa meta porque senão acabamos por ter penalizações. E um país que não invista em ciência é um país que aposta no fracasso. Há uma frase, adaptada, que diz: “se achas que a ciência é cara tenta a ignorância”
Espera que os milhões que vêm do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) proporcionem esse investimento?
Sem dúvida! Neste século não vamos ter tanto dinheiro num espaço tão curto como agora. Se o país não conseguir dar o salto somos todos incompetentes.
Apostou-se demasiado no betão noutros tempos em detrimento da ciência e tecnologia?
As infra-estruturas também eram necessárias. Não tínhamos as internets do passado que eram as estradas, as vias de comunicação. Isso foi muito importante, embora possa ter havido algum exagero, nomeadamente ao nível das autarquias. Mas também estávamos mesmo mal, não havia nada. Hoje não é preciso investir mais em betão, não é preciso mais piscinas, mais auto-estradas… É preciso investir noutras coisas.
Ouve-se muito dizer que a actual geração de jovens é a mais bem preparada de sempre. Comunga dessa ideia?
Perfeitamente.
E essa geração tem a preparação também, que não se aprende na universidade, para enfrentar os desafios do mercado de trabalho?
Falo da situação que conheço, que é a desta casa, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Nova. Há 12 anos que introduzimos entre os dois semestres lectivos cadeiras obrigatórias, a que chamamos, “soft skills”, ligadas ao empreendedorismo, a como ir a uma entrevista, a como fazer um currículo… É caso único a nível nacional. Estamos a munir os nossos futuros engenheiros com outras “skills” para além das técnicas, nomeadamente as humanas. E os resultados são excelentes. Estamos a apostar em engenheiros com uma visão a 360 graus.
Imagine que a convidavam para ministra do Ensino Superior e Ciência. Qual era a sua resposta?
Só poderia responder se fosse o primeiro-ministro, mas como não é… (risos)
Nunca foi aliciada para a política?
Já fui convidada mas tenho-me mantido afastada. Nunca se deve dizer desta água não beberei, mas nesta altura da minha vida acho que o meu contributo para a sociedade é mais valioso na área da ciência do que na área da política. Ainda na semana passada ganhei outro projecto grande do Conselho Europeu de Investigação. Trata-se de financiamento europeu para desenvolver um projecto na área do lixo electrónico.

Uma cientista inovadora e com preocupações eco-sustentáveis

Cientista, professora catedrática e vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa, Elvira Fortunato é especialista em Microelectrónica e Optoelectrónica e uma das inovações pela qual se destaca é a do transístor de papel, descoberta pela sua equipa do Centro de Investigação de Materiais em 2008. Para além de duas dezenas de prémios internacionais foi também apontada como candidata ao Prémio Nobel da Física de 2021.
Elvira Fortunato foi também distinguida pela Comissão Europeia com o Prémio Impacto Horizonte 2020, pela criação do primeiro ecrã transparente com materiais eco-sustentáveis. Licenciada e doutorada em Engenharia dos Materiais, pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, nasceu em Almada a 22 de Julho de 1964 sendo filha de um casal da Louriceira, concelho de Alcanena. A 8 de Junho de 2010 foi-lhe atribuído o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
É casada com o cientista e investigador Rodrigo Martins, um dos inventores do papel electrónico, que foi o seu orientador de doutoramento. Têm uma filha em comum. Elvira Fortunato é um dos cérebros mais valiosos deste país mas a vocação para a ciência só foi descoberta quando já estava a meio da licenciatura, altura em que foi convidada para trabalhar num laboratório de investigação. A sua meta era ser engenheira dos materiais mas o talento e o trabalho fizeram-na chegar mais longe.

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