Companhia das Lezírias é o exemplo de como uma empresa pública pode dar lucro
A maior empresa agro-pecuária do país em área e prestígio, com uma história de quase dois séculos, totalmente detida pelo Estado desde 1975, não só não depende como contribui para o Orçamento de Estado com lucros de milhões de euros.
A gestão é assegurada por um conselho de administração que foge ao estereótipo do sector empresarial do Estado ao ter como presidente António de Sousa, um académico, acompanhado por Isabel Vinagre e Georgete Félix, que representam um caso raro de paridade, acima dos 40 por cento exigidos por lei.
A Companhia das Lezírias é dos casos raros de empresas do Estado que dão lucro. É pela sua riqueza agrícola e grandeza ou pela gestão?
É uma empresa enorme em área, com cerca de 25 mil hectares distribuídos por quatro concelhos: Benavente, Vila Franca de Xira, Salvaterra de Magos e Alter do Chão (Coudelaria de Alter) e pela idade, são quase 200 anos de vida. Uma empresa que passa pelo filtro do tempo e continua pujante tem de ser uma grande empresa. É enorme também pela sua história, que vem do tempo da monarquia, e pelo prestígio. Teve altos e baixos e agora estamos num planalto no qual queremos continuar. Há duas décadas que apresenta resultados líquidos e operacionais positivos. Em 2019 apresentámos o melhor resultado líquido de sempre, com 3,3 milhões de euros que contribuíram para o Orçamento do Estado.
Qual é o modelo de gestão que permite esses resultados?
Os resultados são conseguidos pela acção do conselho de administração e pelos colaboradores. Não há um segredo especial, apenas desenvolvemos um modelo interessante e simples: organização, eficiência e estratégia bem definida. Os administradores e directores têm muito bem definidas as suas tarefas e áreas de responsabilidade. E temos as actividades organizadas em três grupos. A fundamental engloba agricultura, pecuária e floresta. As actividades emergentes, onde está o turismo e onde estamos a tentar agregar as várias potencialidades. Antes da pandemia já tínhamos 20 mil visitantes anuais. O terceiro grupo é o de actividades de missão que são as que fazemos em parceria com instituições de ensino superior e centros de investigação, nomeadamente investigação aplicada.
Seria mais fácil gerir a empresa se não tivesse tantas áreas?
A gestão faz muita coisa mesmo sem muito dinheiro, se houver organização. Mas o dinheiro faz falta para fazer investimentos que são essenciais para o desenvolvimento da empresa. Temos uma estratégia de diversificação de actividades. Se trabalharmos com um produto ou com poucos produtos estamos muito dependentes, a empresa ressente-se num ano mau. A diversificação permite diminuir o risco.
Em que medida é importante a empresa estar nas mãos do Estado?
A chave do sucesso é conseguir o máximo de eficiência produtiva com sustentabilidade ambiental. Quando há privados há mais tendência para o desequilíbrio, mais para a eficiência produtiva e menos para a protecção do ambiente. A Companhia das Lezírias é um bom exemplo de boa gestão pública. Não consumimos recursos do Orçamento do Estado, não temos dívidas à banca e o que fazemos é com fundos próprios. Assumimos uma gestão sustentável, tanto ambientalmente, como socialmente e económico-financeira.
Há alturas em que se fala na privatização da Companhia. Isso vai ser inevitável?
A empresa é muito aliciante quando se olha para os números. Mas quando se começa a ver as outras vertentes percebe-se que não é uma empresa qualquer, que tem condicionantes, porque mais de metade da área está em Zona de Protecção Especial e Reserva Natural do Estuário do Tejo, onde não se pode fazer aquilo que se quer. Esta talvez seja uma das razões pela qual ainda não foi privatizada. Sou contra a privatização desta empresa porque estando nas mãos do Estado e sendo bem gerida é que se consegue ter investigação e proteger o ambiente.
Tendo terrenos junto ao Tejo de que forma o rio é importante e como é aproveitado?
Vamos ter problemas este ano com a seca. É um drama porque a maior parte das culturas na zona são de regadio. Tem de ser resolvido o problema da falta de armazenamento de água no Tejo com uma barragem para fins múltiplos, que não seja apenas de produção de energia. Tem que se estabilizar o caudal para que exista um aproveitamento agrícola.
E qual é a solução, já que nesta zona da lezíria é impossível fazer uma barragem…
A Barragem do Cabril, ampliada, podia ser uma solução. Tem de haver esse investimento, isso é fundamental. Se não houver uma estratégia esta zona vai sofrer e não pode ser outra Barragem do Alqueva que demorou meio século a ser implementada. A solução era para começar ontem, já estamos atrasados.
O que acha do Projecto Tejo de criação de várias bacias de armazenamento de água para a agricultura?
Devemos começar por coisas pequenas e aumentar a escala. Os portugueses têm muito a mania do 8 ou 80. Para quê começar com algo que custa milhares de milhões de euros? Isso só vai atrasar o processo.
Por ser uma empresa estatal tem de ter uma responsabilidade social exemplar?
Temos uma boa relação com as entidades locais. Em Benavente vamos colaborar na criação de um museu da história agrícola e do campino no nosso celeiro, em parceria com a câmara. Ao nível dos trabalhadores temos um fundo complementar de pensões em que uma quantidade substancial do dinheiro que geramos é afecto a esse fundo. Queremos implementar um sistema baseado na meritocracia. Quem tem mais mérito, quem trabalha melhor, deve ser compensado. Estamos a afinar o modelo de avaliação para esse sistema.
Com estes aliciantes é fácil recrutar boa mão-de-obra?
A que existe no mercado não é, muitas vezes, a que procuramos. Quando fazemos as entrevistas de recrutamento apercebemo-nos que há pessoas com poucas qualificações ou mal preparadas para as funções e tentamos sempre recrutar os melhores. Substituir um director não é fácil. Há pessoas que vão para a reforma com um capital técnico e temos de ter muito cuidado porque se metemos uma pessoa desadequada para as funções isso pode trazer várias entropias.
Porque é que a Companhia tem uma comunicação tão tímida?
Não escondemos nada para o exterior mas também não andamos de megafone na rua. Somos discretos e procuramos fazer bem feito. Só dou entrevistas para a comunicação social se me pedirem e se puder. Prefiro não fazer grande alarido mas fazer o que tem de ser feito e bem feito. Isso dá tranquilidade à gestão.
Como é que a Companhia gere a mais antiga coudelaria do mundo, a Coudelaria de Alter, a quase 200 quilómetros de distância?
Não é fácil, mas quem lá for agora vê que a coudelaria com quase três séculos, da qual temos a concessão até 2037, está virada ao contrário para melhor. Temos lá cerca de 300 equinos. Os cavalos são um negócio nicho, não dão dinheiro mas dão notoriedade. Uma empresa é feita de recursos financeiros e prestígio. Alter ainda é deficitária mas estamos a investir para que venha a dar lucro. Temos um cavalo, o Beirão, que colocou Portugal nos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Como é que vê as tendências das novas culturas no Ribatejo como o amendoal?
Não temos nada previsto. Mantemos a aposta nas nossas culturas tradicionais: milho, arroz, olival e vinha. E temos um compromisso ABC: mais Ambiente, mais Biodiversidade e menos Carbono. Por exemplo, as nossas garrafas de vinho pesam menos 30 por cento e os rótulos são feitos com materiais mais ecológicos. Depois temos sobreiros, pinheiros bravos, pinheiros mansos e eucaliptos. Temos entre 2.500 a 3.000 cabeças de gado a pastarem nos nossos campos de produção integrada e biológica.
25 mil hectares de terras e uma elevada exigência ambiental
A Companhia das Lezírias é uma empresa pública com a maior área agrícola do país e com uma exigência muito grande em termos ambientais, já que metade dos 25 mil hectares está em zonas ambientalmente sensíveis. A empresa gera ainda a Coudelaria de Alter, a mais antiga do mundo, e assume a presidência da Associação de Beneficiários da Lezíria Grande de Vila Franca de Xira, que se tem destacado pela sustentabilidade agrícola com um notável investimento de controlo da salinidade no Tejo de modo a garantir água doce para a rega. Tem ainda a vice-presidência da Orivárzea, agrupamento de produtores de arroz para a qual a companhia fornece a maior produção deste cereal.
Em 1836 a rainha D. Maria II mandou vender as propriedades da Lezíria que tinham pertencido à igreja católica e à coroa, tendo sido constituída a Companhia das Lezírias do Tejo e do Sado para arrematar os terrenos em hasta pública. Ao longo dos quase dois séculos de história a companhia resistiu às dificuldades, às transformações sociais e políticas tendo passado pela Monarquia, pela Primeira República, pelo Estado Novo e estando agora na Democracia. Em 1961 foi condecorada com a Ordem Civil do Mérito Agrícola e Industrial. Em Novembro de 1975, após a Revolução do 25 de Abril, foi nacionalizada, e em 1989 passou a Sociedade Anónima de capitais exclusivamente públicos.
Com altos e baixos, a companhia tem vindo nas últimas duas décadas a consolidar a sua situação financeira apostando na eficiência com sustentabilidade ambiental e na inovação e desenvolvimento. São vários os projectos de investigação aplicada no terreno em parceria com universidades e centros de investigação, como o que decorre actualmente com os sobreiros. Uma equipa está a estudar se é possível aumentar a produção e reduzir os ciclos de tiragem de cortiça se as árvores forem regadas com um aproveitamento sustentável da água.
A Companhia das Lezírias está a ser gerida por um conselho de administração presidido por um professor universitário doutorado em gestão estratégica que dá aulas na Universidade de Évora, cidade onde nasceu e onde reside. António Sousa faz todos os dias o caminho entre casa e o edifício da administração em Samora Correia. A cerca de uma hora de viagem para cada lado é o momento para reflectir e preparar o que tem de fazer. Foi presidente da Assembleia Municipal de Viana do Alentejo, vila onde viveu 30 anos. Esteve a gerir a empresa em 2010 e 2011 e agora está no primeiro ano do segundo mandato de três anos. António Sousa é contra a privatização da companhia e considera-se um gestor desprendido dos lugares que procura fazer o melhor.
Na gestão da companhia, António Sousa assenta o sucesso na organização e com respeito em três vértices. Num está a conciliação da tradição com a inovação, honrar o passado sem condicionar o presente e a inovação que é ponto de vantagem competitiva. No milho apostou-se na agricultura de precisão que tem conseguido aumentos de produtividade e a floresta é certificada com o selo internacional FSC. Outro factor de sucesso é o conhecimento. “Quando gerimos uma empresa destas temos de estar constantemente a tomar decisões e há gestores que têm pavor a decisões. Procuramos sempre decidir com base no conhecimento e às vezes colocamos uma pitada de intuição”, refere. O terceiro vértice passa pela aposta nas parcerias, com projectos de investigação que “são as sementes das inovações do futuro”.