O MIRANTE | 02-03-2023 07:00

O pedantismo de Lisboa e do Porto é um flagelo para Portugal

O pedantismo de Lisboa e do Porto é um flagelo para Portugal
ESPECIAL PERSONALIDADES DO ANO
Pedro Santana Lopes é o político com maior currículo em Portugal e garante que dos trabalhos que mais gostou e ainda gosta de fazer é o de autarca

Pedro Santana Lopes tem 66 anos e é o político com maior currículo em Portugal. Nas últimas eleições autárquicas, depois da má experiência na fundação de um partido, foi como independente à Figueira da Foz e voltou a ganhar as eleições. O seu discurso não deixa dúvidas: é um político sem medo que gosta de ir à luta, com vontade de mudar mentalidades com trabalho no terreno enquanto outros se ficam pelos discursos. Nesta entrevista não faltam exemplos que provam a sua resistência, coragem e ousadia que não vemos noutros políticos, nem da velha nem da nova geração.

Como é que foi o regresso à Figueira da Foz; imagino que foi encontrar mais rotundas?

Rotundas e aquelas obras típicas de autarcas pouco experientes, mas enfim, a Figueira é sempre bonita. Aqui em Lisboa é de loucos. Até já estranho quando cá estou. No outro dia estava a pensar: Santarém está a 60 quilómetros, a Figueira a 180…

Daqui a 3 anos ainda vai ter vontade de ir à luta política?

Nunca se sabe, nunca se sabe.

O regresso à Figueira da Foz foi uma questão de orgulho, de corresponder ao sentimento da alma?

Um bocado isso, mas também uma questão de dívida, que eu sentia há muito tempo, mas não podia pagar por estar noutras funções. Desta vez pôde ser, mas foi muito a alma a falar. A experiência muito negativa quando criei a Aliança e saí do PSD deu-me alento para responder a este sentimento. Fui por causa da minha alma de guerreiro, não é de menino, mas a minha alma de guerreiro maduro, experiente, que não vira a cara à luta. Adoro a Figueira. Gosto muito da terra, gosto mesmo. É bonita, e eu sou caranguejo. Adoro o trabalho autárquico. Era primeiro-ministro e disse isso algumas vezes: dos trabalhos que mais gostei de fazer foi o autárquico e continuo a dizer a mesma coisa.

Para quem foi presidente da Câmara de Lisboa era de esperar que o desafio fosse aqui?

Gostei muito do trabalho que fiz em Lisboa, de facto foi uma correria louca. Mas está tudo feito, só podemos mostrar trabalho construindo escolas, túneis, etc, etc, e gerir o que já existe. Ser presidente da capital de um país europeu é muito importante, mas se me perguntar em termos de satisfação no trabalho, prefiro uma câmara onde ainda haja muito por fazer. A Figueira da Foz é muito mais desafiante que Lisboa para planear, delinear uma política de fomento para um território maior, ainda está por consolidar, fazer opções em termos de planeamento de infraestruturas, desenvolvimento de núcleos habitacionais.

Também fica com mais tempo para continuar a intervir como colunista de jornal e comentador de televisão.

Sim, permite, embora suscite muitas raivinhas e rivalidades. Mas a vida é feita disso. Vivemos num mundo muito complicado. Agora o tema são os abusos sexuais, a habitação, a guerra sempre em fundo; todos os dias há muitos assuntos. Comecei na CMTV com três minutos e já vou em dez.

Comentar é diferente de escrever. Continua com tempo para alinhar um artigo?

Nem vos conto. Ando sempre a correr para ir para qualquer lado e hoje em dia gosto de ser pontual. Com este trânsito é impossível. É uma pressão muito grande. O trabalho de autarca hoje em dia é muito mais pesado do que há 20 anos. Não me pergunte porquê porque as câmaras têm mais competências, mais atribuições? Talvez. Não é fácil ter tempo para tudo o que gosto de fazer, ainda por cima para quem tem família em Lisboa e trabalha na Figueira.

Mas quando está na Figueira da Foz o seu coração está lá?

Estou lá. Saudades dos filhos, dos netos e dos irmãos, mas estou lá.

E a sua tensão arterial baixa quando está na Figueira da Foz?

Baixou sim, aqui hoje está alta de certeza absoluta.

Consegue manter os hábitos de homem citadino na Figueira da Foz?

Sem problemas. Gosto de jantar e almoçar fora, mas isso gosto cá e gosto lá, e a Figueira tem óptimos restaurantes: de resto é trabalho casa, casa trabalho ou então cerimónias ao fim-de-semana.

Não tem vida social.

Não tenho e cada vez gosto mais de não ter. Gosto de estar com as pessoas de quem gosto muito, de resto prefiro estar sozinho.

Quando diz que o mundo está caótico vê isso na perspectiva de um homem de 66 anos ou vê isso como um analista, um observador do que se passa à sua volta?

Detesto caretas, não gosto de pessoas retrógradas. De facto o mundo está muito complicado para quem é novo e para quem tem mais idade. Mas é um privilégio viver na época da descoberta da inteligência artificial, é algo de outro mundo. Vamos passar a ter um número de identificação digital que é contraditório com o regulamento da protecção de dados; este é um tempo de imensas contradições. Para além deste desgosto de vermos como um homem só pode pôr um continente em guerra e causar tanto sofrimento.

Vamos acalmar o discurso. Qual foi a última vez que foi de férias?

Para aí há dois anos e meio. No Verão passado tentei sair duas vezes, saí de manhã e tive de voltar à tarde. Não há uma vez que eu saia da Figueira que não haja incêndios.

Não vai ao estrangeiro há dois anos?

Desde que começou a pandemia

Nem sequer viajou até Madrid?

Isso é uma coisa vergonhosa, eu adoro Madrid e não vou a Madrid julgo que há seis anos ou sete. Os aeroportos estão um caos. Quando acabou a pandemia vim para a Figueira. Esta é a minha melhor viagem, o meu destino exótico, para além de local de trabalho, para além de terra de paixão; aqui mudo de ares; sempre pensei assim: para quê visitar noutros países o que é muito melhor no nosso.

O que é que não lhe sai da cabeça no dia-a-dia? Consegue abstrair-se e não ter uma fixação por qualquer coisa?

Consigo, mas depende do plano em que falamos.

Ter medo de um acidente na estrada, por exemplo.

Já tive um grande acidente há três anos na A4. Procuro não pensar, já ultrapassei. Houve um tempo em que tive receio. Tinha receio de andar junto às bermas da estrada porque no grande acidente andei às cambalhotas dentro do carro. Para lhe responder tenho que dizer que quando viajo rezo muito e o rezar faz-me pensar também; e gosto. Gosto de dar graças, gosto de agradecer. Na pandemia pensei tanto nisso, tanta gente que queria estar confinada no mundo, os refugiados gostavam de ter micro-ondas e frigorífico, e uma cama onde dormir, e nós estamos aqui com angústias porque estamos confinados. Gosto muito de pensar nos contrastes do mundo e rezar; faz-me muito bem.

Conhece trechos da Bíblia?

Conheço alguns, mas vou pouco à Bíblia, devo confessar. Gosto mais de falar com Deus.

Fala sempre com Deus ou de vez em quanto também fala com os anjos?

Com Deus. E também com Nossa Senhora.

Já fez muitas vezes o caminho Lisboa-Figueira da Foz ao telemóvel?

Quando viajo com motorista nem vejo o caminho, vou ao telemóvel sempre a trabalhar. Mas adoro conduzir e irrito-me muito quando vão outros a conduzir porque cada um tem a sua maneira de conduzir; portanto, para ir mais calmo adoro vir a guiar por aí fora, a pensar, ouvir música, a rezar.

O gosto pela intervenção pública levou-o um dia a comprar e fundar jornais. Podia ser hoje facilmente um empresário da comunicação social?

Podia; o jornalismo, a política, a vida em sociedade, a organização social, isto está tudo ligado. Mas cada um sabe do seu ofício. Reconheço que é fascinante e extraordinário esse mundo da comunicação social. Quem sabe...

Vivemos tempos muito difíceis.

Não é só a comunicação social. O mundo dos livros também sofre do mesmo problema. Continuo a gostar de ler jornais. Às vezes compro os jornais e não tenho tempo para os ler, mas compro.

Qual é a pergunta que não gosta que lhe façam?

Hummmm, a pergunta que menos gosto? “qual é a sua ambição.” ou “ainda quer ser?” É a que menos gosto.

Reve-se mais como um estadista, um provocador ou um operário?

Procuro sempre ter o sentido da responsabilidade de Estado. Operário sim, adoro trabalhar e trabalho tanto quanto posso. Isso sempre foi a coisa que menos gostei, foi que algumas pessoas pensassem que não era responsável ou que não trabalhava muito, que era um diletante, um bom vivant. O trabalho para mim sempre, sempre esteve à frente. Sempre gostei de me divertir mas só depois de ter o trabalho pronto. Onde me revejo menos é no termo provocador; já fui; hoje procuro juntar, mais do que provocar. Unir é fruta da época.

A vida política de hoje tem alguma coisa a ver com a dos tempos em que trabalhou com Francisco Sá Carneiro ou que esteve primeiro-ministro?

Comparar a vida de hoje com a dos anos oitenta não tem nada a ver. A internet mudou tudo. O que sinto mais é desilusão e tristeza por a política em democracia não ter trazido tanto quanto eu esperava e gostava na melhoria de vida das pessoas. O facto de estar na Figueira da Foz permite-me lidar muito com a realidade do país e Lisboa, principalmente Lisboa e Porto, não têm noção do que se passa no resto do país porque se tivessem não acredito que não tomassem outras decisões. Coisa que me faz muita impressão; os portugueses de Lisboa e do Porto são muito pedantes nisso, não conhecem e gostam de não conhecer. Vejo isso até nos meus amigos e irrita-me solenemente. Há dias fui a um jantar e as pessoas perguntavam: “Então e a Figueira?”, perguntam-me como se eu estivesse no estrangeiro e respondi “É boa” e elas: “mas como é que podes ser tão seco”. “Opa”, sou seco quando me falam da Figueira da Foz como se não fosse Portugal”. Este centralismo é o que tem dado mais cabo de Portugal. Ainda hoje de manhã foram registar um barco que compramos por causa das obras na ponte Edgar Cardoso. Tivemos que vir a Lisboa para o meterem no computador. A licença de fogo-de-artifício teve de vir a Lisboa. É de loucos, mas continua. É por isso que tenho medo deste anúncio da descentralização. O que correu melhor ainda foi a constituição das CIMT’s. E eu era muito céptico.

Lisboa e Porto são cada vez mais cidade estados?

Este pedantismo de Lisboa e do Porto é um flagelo para o país. Lisboa, pela sua localização geográfica, por ser a capital, teve muitos privilégios. Hoje em dia isso gera um desequilíbrio muito grande no país. Toda a região centro tem falta de investimento, vive-se noutro mundo. Para a grande maioria só existe Lisboa e Porto; e Algarve para férias.

O futuro aeroporto em Santarém tem sentido?

A região centro precisa de um aeroporto. Em Santarém?

Prefere em Coimbra ou na Figueira da Foz?

Preferia Monte Real; está feito e é bom estrategicamente. Aeroporto na Margem Sul acho que é errado.

Mas um aeroporto em Santarém sem custos para o Estado...

Ah isso é uma grande vantagem.... se for verdade.

Como é que se lembra do impacto que teve a descentralização de uma secretaria de Estado da Agricultura para a Golegã. Nessa altura fez história, mas foi por pouco tempo.

O país precisa dessa reformas como de pão para a boca de quem tem fome. Faz-me imensa confusão ver como é que as pessoas não percebem isso. Há cerca de quatro anos andei pela Beira Alta com as pessoas a dizerem-me que andavam por lá uns tipos de Lisboa a fazer o cadastro da floresta. Se nós é que somos de cá porque não entregam esse trabalho ás associações, perguntavam, e com razão. Continuamos a vir ao beija-mão a Lisboa. É um erro crasso. Pobre Portugal. E isso atormenta-me, digo-o porque é evidente. Passou tanto tempo e não resolvemos este problema do centralismo.

50 anos depois do 25 de Abril os políticos da Era da liberdade já roubaram mais que muitos ministros de Salazar. Temos casos que são de bradar aos céus. Há uma série de escândalos que apanharam os políticos do 25 de Abril que deveriam envergonhar os líderes partidários e fazê-los trabalhar mais para que a justiça funcione e a democracia se consolide.

Pelo menos há razões para as pessoas se sentirem tristes como eu me sinto. As pessoas têm da política uma ideia muito feia e isso é uma tristeza; devia ser o contrário.

O cargo de primeiro-ministro, embora curto, proporcionou-lhe até agora a sua melhor realização como político?

Não. Foi bonito, mas também foi, em certa medida, flagelador, porque foi uma época muito complicada. Para que isso acontecesse precisava de estar lá 10 anos.

Qual foi a maior ofensa que lhe fizeram até hoje?

Costumo dizer que a saúde é o maior bem, mas ter saúde sem honra não vale a pena, mas não vale mesmo e, portanto, não queiram saber o que me tenho controlado para não reagir de outra maneira porque honra é um bem sagrado e só sabe o quanto é sagrado quem é honesto, quem não é não sabe.

Ainda pode voltar ao PPD/PSD?

Se fosse hoje não voltava, mas não posso voltar agora porque fui eleito como independente.

Não precisa do partido?

Não, não preciso, mas de coração sou de lá. Agora não gosto da vida partidária por dentro, nunca gostei, sempre me dei mal com os aparelhos dos partidos por isso estou melhor assim.

Essa coisa de ir cinco vezes à luta para ser o presidente do partido é inédita.

Fiz o que achei que devia fazer. Não tenho medo de perder. Se achar que devo ir à luta, se tiver forças para isso, vou à luta. Digam de mim o que disserem.

Como aconteceu quando era secretário de Estado da Cultura?

Lá está; e sabia que Cavaco Silva detestava que um membro do seu Governo se demitisse. Ele é que os mudava, mas aí fiz questão de sair pelo meu pé.

A maior parte dos políticos da sua geração como, por exemplo, Durão Barroso, estão em lugares magníficos, com vidas boas, sem grandes preocupações. Não tem inveja?

Não. Tenho o que preciso, dou muito graças a Deus por isso. Nunca quis ser rico, não se pode ter tudo na vida, não é? Vivo bem, tenho o que quero, nunca quis ter barcos, nem aviões e mesmo casas compradas resisti muito; o meu pai era muito de arrendar casas.

Não há na vida política portuguesa quem tenha um currículo como o seu. Sabe que faz a diferença?

Talvez saiba. E ninguém sabe se ficamos por aqui, não é?

Voltamos ao início da conversa. Santarém fica muito mais perto de Lisboa?

Quem sabe, quem sabe. Nesse capítulo sou muito soarista. Tinha uma grande admiração por Mário Soares que nunca olhou para trás a pensar que por já ter sido Presidente da República não podia disputar outros lugares. Acho isso extraordinário, até me arrepia, esse é um estilo de pessoa em que me revejo. Sou Sá Carneirista, como sabe, mas principalmente no tempo final da vida de Mário Soares ele distinguiu-me com uma simpatia imensa. E aprendi muito com ele.

Se tivesse uma varinha mágica e pudesse dar um conselho ao primeiro-
-ministro que prioridades lhe apontava?

Em primeiro lugar a saúde. Haver condições de saúde em todo o país. As pessoas não podem morrer por não terem assistência médica ao pé de casa, num país razoavelmente civilizado, para mim é algo revoltante. E não digo isto por o meu pai ter morrido porque caiu e a ambulância ter chegado hora e meia depois. Já não digo isto há muito tempo. Em miúdo, e já adulto, dizia que o que mais gostava de fazer um dia na política era ser ministro da Saúde e não é por acaso. Se há algo que me revolta é as pessoas precisarem de ir ao médico, ao hospital, ao centro de saúde, chegarem lá e terem a porta fechada ou estarem horas à espera, um dia inteiro à espera na urgência. Não consigo aceitar.

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