O MIRANTE | 02-03-2023 16:00

O segredo de um século de actividade da SFUS está no seu ecletismo

O segredo de um século de actividade da SFUS está no seu ecletismo
ESPECIAL PERSONALIDADES DO ANO
Carlos Pernes é o director da Sociedade Filarmónica União Samorense, colectividade de Samora Correia que foi fundada em Maio de 1921

A história centenária da Sociedade Filarmónica União Samorense (SFUS) marca também a histó-ria da freguesia de Samora Correia. A colectividade resistiu à Segunda Guerra Mundial, apesar de ter parado a actividade, ao regime ditatorial do Estado Novo e a outros períodos conturba-dos da história. Actualmente a SFUS tem mais de três mil sócios e divide a sua actividade entre a música, o desporto e a cultura. Carlos Pernes assume pela terceira vez o leme da direcção e garante que o sucesso da colectividade está no “eclectismo” e no facto de a política ser deixada à porta.

Numa altura em que muitas colectividades se queixam de uma crise de associativismo como é que a SFUS consegue manter mais de três mil sócios e não ter uma crise directiva?

O segredo é o eclectismo e a diversidade. Por volta de 1888 existiam divergências entre músicos e bandas por causa de questões políticas. De um lado os monárquicos, do outro os republicanos. Esta guerra afectou na altura a estabilidade das bandas filarmónicas no país inteiro. A SFUS uniu as duas facções em 1921. Precisamos conhecer o passado para entender o presente e construir o futuro. Uma colectividade que tem uma banda filarmónica, um rancho folclórico, teatro, secção cultural, tuna, secção de pesca desportiva, caravanismo e campismo e natação faz com que tenhamos tantos sócios. Ninguém na colectividade pratica modalidades sem ser afiliado. O regulamento permite também que os filhos dos sócios pratiquem todas as nossas actividades. Mas os sócios não são todos participativos. Nas assembleias gerais, por exemplo, existe crise de participação.

Qual é o papel da colectividade na comunidade?

A SFUS é a mãe de todas as colectividades. Muitos dos que passaram por aqui fundaram outras associações. Excepto o Grupo Desportivo de Samora Correia, todas as colectividades mais relevantes têm na sua composição fundadores que passaram pela SFUS.

O facto de ser centenária dá-lhe mais importância?

O peso maior é o da história. Antes do 25 de Abril esta era a única colectividade e nunca pactuou com o Estado Novo. Daqui saiu muita gente que seguiu caminhos de intervenção democrática e alguns políticos. Temos uma regra, que é não discriminar ninguém pelas opiniões, cores e confissões. Todos têm direito a exercer cargos e a serem associados. Não há nenhuma mochila política que entre aqui. Ficam todas à porta e desta forma todos se dão bem.

Como é que se consegue manter uma estabilidade financeira?

Há pouco tempo tínhamos um défice estrutural mensal de 700 euros. Ou seja, as receitas correntes, mais os subsídios da Câmara de Benavente e Junta de Freguesia de Samora Correia eram menores que as despesas com água, luz, seguros e pagamentos aos professores. Aqui cumpre-se a legislação em vigor. Não está aqui ninguém que não emita recibo de prestação de serviços. Felizmente recentemente ultrapassamos este défice estrutural com o aluguer do nosso antigo bar a um grupo na área da saúde.

Quais as maiores dificuldades?

São as financeiras. Queremos avançar com certos projectos e não podemos. Como, por exemplo, novos fardamentos para o rancho, instrumentos musicais para a banda filarmónica, despesas de promoção desportiva da secção de pesca e compra de equipamentos para a natação. Precisamos de comprar uma tuba para a banda que custa cinco mil euros. A última estava tão velha que não resistiu. Temos três músicos tubistas, todos de bom nível, e só duas tubas. A sorte é que muitos músicos compram o próprio instrumento com que tocam e assim ajudam a colectividade.

Os dirigentes associativos devem ser remunerados?

A tradição do movimento associativo é não ser remunerado. Mas temos de ter funcionários ao serviço das colectividades. Temos uma funcionária administrativa e outra da limpeza. Depois são os custos com os professores de música e os monitores, mas nenhum é director desta casa. Os estatutos não o permitem. No futuro não sei como será porque estamos no limiar entre a ética e a moral. A ética diz que não, e a moral abre uma porta porque o voluntariado tem de ser conjugado com o profissionalismo e isso não é fácil de gerir. É-se dirigente porque se quer e trabalha-se voluntariamente a 100%. Não recebemos e ainda gastamos do nosso bolso em refeições, deslocações e transportes.

Qual foi a necessidade de se criar uma secção cultural?

Esta secção dedica-se a promover colóquios e debates. Já realizamos um colóquio sobre o cérebro e os acidentes vasculares cerebrais em parceria com uma associação. Também retomamos o concurso anual de poesia com um júri que avaliou dezenas de textos. Este prémio já está institucionalizado e agora será entregue todos os anos. Temos também o nosso núcleo museológico, que assinala os 100 anos de actividade da SFUS, e que é assegurado durante a semana por um funcionário da câmara. Não temos possibilidade de ter um funcionário em permanência que garanta a porta aberta, excepto ao fim de semana.

Os que mais criticam são os que nada fazem

Se o novo aeroporto vier a ser instalado no campo de tiro perto de Samora Correia o que é que a SFUS ganha com isso?

A população cresce ainda mais, mas também não será isso que fará a diferença. O aumento da população no município de Benavente, sobretudo na freguesia de Samora Correia, já se reflecte no aumento do número de jovens a frequentar natação e música na SFUS. Novos residentes representam novos associados.

Vai dormir com os problemas da SFUS? O que o tira do sério?

Alguns levo comigo, mas estou rodeado de bons elementos que me tiram a preocupação. Com os anos habituei-me a controlar a irritação. O que acho estranho é que os que mais criticam são os que nada fazem. Quando estamos rodeados de centenas de pessoas dentro de uma casa somos uma família e mesmo as famílias têm divergências. Mas é difícil acontecerem situações limite porque não deixo que aconteçam.

Dedica-se à actividade política, à escrita, é contabilista certificado. Porque decidiu assumir a presidência da SFUS?

Já é a terceira. Estive aqui em 1976, tinha 22 anos. Na altura fiquei com a vice-
-presidência e depois a presidência. Aos 40 anos assumi de novo a direcção e estive seis anos. Passaram mais 20 anos e lançaram-me o desafio que aceitei porque é muito aliciante. Agora estou aposentado e tenho mais disponibilidade para a SFUS e tenho mais experiência.

Onde é que gostava de ver a colectividade daqui a dez anos?

Com a dinâmica que tem vindo a ter. Com noites de fado, três festivais de folclore anual. A banda a acompanhar vedetas da música nacional como foi agora com António Pinto Basto. É assim que queria ver a SFUS com esta dinâmica artística e cultural.

Os espaços culturais em Samora Correia são suficientes?

Precisamos de um multiusos que tenha capacidade para mil a mil e duzentas pessoas. É um sonho antigo e demora a concretizar.

Qual o estado da cultura no nosso país?

O Estado não apoia o movimento associativo e quando faz alguma coisa é sempre com segundas intenções. Não tem uma visão global, mas sim uma visão do Terreiro do Paço, dos ministérios. Esquecem-se que a SFUS e outras colectividades são as universidades do povo que não teve acesso ao ensino superior e ao ensino da música. Não tiveram possibilidades de estudar em conservatórios. Daqui já saíram muitos músicos para a banda da Força Aérea, da Marinha e da PSP. Não existe vontade política nem preocupação com o movimento associativo. Se tiver um bom professor e não tiver um bom instrumento chego onde?

Quais são os momentos mais marcantes da SFUS?

Foi o músico António Rato ter avançado com mais dois amigos para a criação da banda e da sociedade filarmónica. Um momento fulcral foi a passagem, em 1991, das antigas e precárias instalações para a nova sede que é a que temos hoje. Por aquilo que conheço das actuações da banda e do folclore por esse país fora não existem muitos espaços como este. Todas as outras associações estão muito mais mal instaladas. O nosso salão tem capacidade para albergar 400 pessoas.

Há muitas actividades previstas para este ano?

A banda vai participar no Festival de Filarmónicas, em Manteigas, e actuar na Semana Taurina de Samora Correia e no nosso festival. O rancho folclórico tem actuações marcadas para a Sertã, Arruda dos Vinhos, Grândola, Aljustrel, Festas de Samora Correia, Festas do Porto Alto e corridas de toiros. Para além da sessão solene do nosso aniversário temos o concurso de poesia e a atribuição do prémio professor Fernandes Pratas (desde 1962). Premiamos os melhores alunos indicados pelos agrupamentos de escolas.

Manter a dinâmica cultural e honrar a história

A 10 de Maio de 1921 foi criada a Sociedade Filarmónica União Samorense (SFUS), graças ao empenho e dedicação de José de Oliveira Rato, do professor Neves e de João Pedro Fernandes. Os três fundadores da colectividade formaram a banda filarmónica que ficou a cargo do maestro António Almeida e Oliveira e foi sobre a regência deste que se produziram as primeiras actuações. Para além da música foi criado um grupo cénico (1923), sessões de cinema (1927) e organizados os primeiros bailes.

A dinâmica associativa da SFUS prolonga-se durante os anos 30. Em 31 de Agosto de 1937 é apresentado publicamente o Hino da SFUS com letra do professor João Fernandes Pratas e música do maestro António de Almeida e Oliveira. Desde a sua fundação até ao início da Segunda Guerra Mundial é a SFUS que assume quase toda a actividade musical e cultural que se produz em Samora Correia, mas o conflito obrigou a colectividade a ficar parada de 1939 a 1944.

A longa história da SFUS está registada no livro “Muitos Aniversários têm 100 anos”, de Carlos Pernes, actual presidente, porque não se resumem os quase 102 anos num simples texto. Nos anos 60 acolheu uma biblioteca fixa, a número dois, da Gulbenkian. Os 100 anos estão também retratados no Núcleo Museológico, que funciona na sede antiga, situada na Praça da República. O objectivo é tornar a exposição dinâmica actualizando-a sempre que se justifique.

Apesar de a música ser a principal razão da sua existência desde a fundação, a colectividade assumiu sempre o seu eclectismo abarcando uma série de actividades desportivas, musicais e culturais. Tem um orçamento de cerca de 70 mil euros, que é curto para as necessidades.

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