O MIRANTE | 02-03-2023 08:00

Orlando Ferreira: o optimista que acredita que em cada pessoa há um campeão

Orlando Ferreira: o optimista que acredita que em cada pessoa há um campeão
ESPECIAL PERSONALIDADES DO ANO
Orlando Ferreira é administrador da Rodoviária do Tejo e vai aposentar-se em breve deixando na empresa um legado de admiração e afecto

Orlando Ferreira é aquele tipo de pessoa que não faz para ser notado, mas a sua presença é notada por ser uma pessoa tranquila apesar de já ter passado por muitas aventuras em muitas viagens que fez. Estudou engenharia, foi aos Jogos Olímpicos de Munique como judoca e per-deu um ano do curso por causa disso. Considera que é preciso tirar o campeão que há em cada pessoa, chateia-se que lhe mintam ou que não o acompanhem nos seus projectos, mas não faz dramas com isso. Segue em frente mesmo quando algum amigo lhe faz alguma que nunca faria a alguém. Tem uma vida ligada aos transportes e enquanto administrador da Rodoviária do Te-jo, de saída para o descanso, deixa um legado de admiração e afecto patente na forma como na empresa falam dele.

Com 19 anos foi aos Jogos Olímpicos de Munique como praticante de Judo. De que forma o marcou a participação na competição?

Marcou-me porque tive um objectivo e consegui concretizá-lo. Estávamos em 1972 e era duro conseguir o objectivo de participar nos Jogos porque tinha-se que obter um bom resultado internacional. Desisti um ano dos estudos no Instituto Superior Técnico para obter os mínimos olímpicos, numa altura em que não havia estatutos de atletas de alta competição em Portugal nem apoios. Estava em Engenharia Civil, no ramo de estruturas, e quando regressei tive alguma dificuldade em readaptar-me.

Como é que viveu o atentado contra os elementos da comitiva israelita?

Na altura não ficámos na aldeia olímpica junto com as outras selecções. Fomos para um prédio com os atletas da Rodésia, ligeiramente afastado dos outros. Senti que havia algo diferente com a selecção portuguesa. A Rodésia foi expulsa dos jogos numa votação em que estivemos também em risco. Ficou claro que em 1976 não entraríamos por causa de sermos um regime ditatorial. O primeiro impacto que tive foi que a política estava metida nuns jogos que eram os da alegria, do amor, da amizade, da reconciliação da Alemanha e que se tornaram num palco de guerra.

Perceberam logo o que é que se estava a passar?

Estávamos num 17º andar e tivemos o acaso de estar mesmo em frente à equipa israelita. Não sabíamos o que se passava, mas via-se muita movimentação, helicópteros… sabíamos que havia mortos mas não sabíamos porquê. Depois de Munique os Jogos Olímpicos nunca mais foram os mesmos. Houve muito amadorismo por parte da Alemanha, que não aceitou a ajuda da Mossad (serviços secretos israelitas) e pareceu-me que o objectivo era salvar os jogos e não proteger os atletas.

Qual é que foi o resultado desportivo que conseguiu?

Nenhum. Éramos 30 judocas e sabia que ganhava a sete, entre os quais o espanhol. Os outros eram todos profissionais, os russos, os japoneses. Nós só treinávamos três vezes por semana. Na primeira eliminatória calhou-me o japonês, que tinha sido campeão absoluto do Japão naquele ano. Fui logo eliminado e fiquei a assistir e a viver a aldeia olímpica. Para mim o marco mais importante numa competição destas é a cerimónia de abertura.

Como é que se portaram na abertura dos Jogos?

O chefe da delegação portuguesa era o Moniz Pereira. Enquanto todas as outras eram coloridas nós éramos os atletas do fato cinzento. Quando passávamos à tribuna tínhamos de levar a mão ao chapéu e colocá-lo no peito. Fomos os únicos que passámos pela tribuna com o chapéu enfiado na cabeça porque ninguém ouviu a indicação do Moniz Pereira. Foram os primeiros jogos do Carlos Lopes, do Fernando Mamede.

Quando foi a última vez que praticou Judo?

De vez em quando ainda pratico. Tenho a mania que ainda tenho 20 anos, mas já estou nos 70. Mas deixei a competição em 1980. Deixei o ensino da modalidade, deixei tudo. Vendi o fato de treino. Queria mudar de vida.

Para que é que lhe serviu o curso de engenharia?

Nos dois primeiros anos do curso estava no ramo de estruturas. Os de urbanização e transportes chamavam-se de vias fáceis. Quando retomei o curso após os Jogos Olímpicos fui para vias fáceis. Entrei no mundo dos transportes e isso colou-se ao meu corpo. Confúcio dizia: escolhe um emprego onde sejas feliz e nunca terás de trabalhar. Nunca trabalhei na minha vida.

Já está reformado, continua a trabalhar. O que pensa da vida?

Não sei. Vou sair de funções definitivamente. Tenho associações a que pertenço e se calhar estão à espera que eu tenha tempo. Tenho o doutoramento para acabar na área das Ciências Políticas. A ideia é perceber porque é que há assuntos que entram na agenda política e outros não. O doutoramento não me vai servir para nada. É prazer, mais uma vez, é para me fazer feliz.

Como é que viveu a revolução do 25 de Abril de 1974?

Estava no Instituto Superior Técnico. Sabíamos que havia uma revolução, mas não sabíamos de quem. Lembro-me de participar nas eleições do MDP/CDE em que tínhamos de fugir à polícia quando se falava da guerra colonial. Era o tempo certo para sermos revolucionários. Depois do 25 de Abril o desencanto foi aparecendo, porque a lógica já era defender este ou aquele partido político. Éramos muito idílicos na altura antes da revolução.

Uma cadeira é um lugar perigosíssimo para gerir
uma empresa

Sendo lisboeta como é que foi ir para a Rodoviária do Tejo que tem sede em Torres Novas?

Os convites do patrão são sempre sem direito a dizer não. Disseram-me que precisavam de mim na empresa. Torci o nariz. No segundo mandato já não estava contrariado e depois passei a dizer que já não queria sair daqui. A sede da empresa é em Torres Novas e no primeiro dia fui parar a Torres Vedras. O percurso que fiz até Torres Novas acho que foi o que mais praguejei a guiar. Comecei a gostar desta região. O Ribatejo é uma região melhor do que aquilo que fazem dela e com uma enorme potencialidade. Já me sinto um bocado ribatejano sem saber porquê. Continuo a viver em Lisboa, na Almirante Reis, mas não tenho prazer em viver em Lisboa, já não me vejo a viver toda a vida na capital.

Quem está consigo uns minutos percebe que não consegue estar quieto. Está sempre a pensar? Nunca está satisfeito?

Uma cadeira é um lugar perigosíssimo para gerir uma empresa. Gosto de ir aos locais. A minha secretária nunca tem papéis, trabalho nas secretárias dos outros. Gosto de andar e conversar. Em Portugal conversar não é sinónimo de trabalhar. Mas é conversando que se passam as mensagens, não é com instruções internas.

Já experimentou conduzir um autocarro?

Não, mas todas as pessoas mais jovens que têm cargos na Rodoviária do Tejo têm de tirar a carta de pesados de passageiros. A linguagem com os motoristas é diferente.

Sempre tem mais alguém habilitado a ser motorista se for preciso…

A falta de motoristas é dramática. A função de motorista mudou de paradigma. O salário dos motoristas deu um pulo enorme, mas as pessoas já não estão para abdicar de algumas coisas. As empresas têm de ter uma estrutura muito maior, mas mesmo que assim seja não há motoristas. Não posso ter um motorista para fazer um serviço de manhã e outro para fazer outro serviço à tarde. Depois não faz sentido só se poder ser motorista de autocarros aos 21 anos. Isso afasta os profissionais. Nesta empresa cumprimos a legislação, os tempos de descanso e devia haver mais fiscalização porque há quem não cumpra.

Qual é o futuro dos transportes?

O sector tem de ser mais flexível, se calhar já não faz sentido haver passes, as pessoas compram viagens e utilizam quando quiserem. As coisas estão a mudar, os desafios são interessantíssimos. As pessoas são mais exigentes. Em termos sociais os nossos trabalhadores têm exigências que antes não existiam.

Quantas viagens já fez?

Gosto de viajar para sítios estranhos. Sempre tive o desejo de conhecer todas as maravilhas do mundo. Só me falta uma: Machu Picchu. Fiz muitas viagens de mochila às costas, sem nada marcado para ficar.

Gosta de viajar. Qual foi a viagem mais louca?

A mais marcante foi ao Egipto. Ainda hoje sinto o cheiro das pirâmides. É aquela viagem em que ficamos de boca aberta pela dimensão e pela qualidade das pessoas. Tudo é enorme e tudo é injustificável. Outra foi a Petra. Como é que no meio do deserto há um projecto hidráulico que é inacreditável. Se desse aulas nessa área levava todos os alunos a Petra. É um projecto de recuperação de água inacreditável. Sou uma pessoa pacata, não tenho aventuras (risos). Mas todas as viagens foram uma aventura. Ir à India é uma aventura, andar perdido em Xangai é uma aventura... Gosto de fazer o turismo da realidade, ir às favelas do Brasil, às zonas pobres da Índia.

Quantas vezes já teve medo na vida?

Muitas vezes, mas o ter medo não quer dizer que não se vença. Muitas vezes tenho medo de decisões mal tomadas, mas o medo não me imobiliza. Não tenho medo da morte, mas tenho medo que aconteça algo às pessoas mais queridas. Sou feliz e bem resolvido. Tenho boas equipas de trabalho.

Alguma vez se incompatibilizou com alguém?

Sim! E até com alguns amigos. Mas também tenho isso resolvido. Sou um optimisma sem reservas. Acredito nas pessoas, mas se me fizerem uma malandrice é da vida. Já tive bons amigos que me fizeram coisas que eu era incapaz de fazer, mas sigo o caminho.

Um observador e conversador que gosta que percebam o que podem tirar dele

Orlando Ferreira, administrador da Rodoviária do Tejo em fim de ciclo. Reformado há três anos vai sair da empresa para dar lugar a outros. Nasceu em casa, em Campolide, através de uma parteira, a 5 de Fevereiro de 1953. Foi praticante de Judo, foi aos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, quando houve um atentado contra a delegação israelita. Observador nato, diz que é a primeira pessoa a perceber na empresa se alguma funcionária está grávida. Assume-se como um conversador e sublinha que o melhor que sabe fazer é ouvir. Foge ao estereótipo de administrador que passa o tempo na cadeira à secretária.

As piores coisas que lhe podem fazer é mentir e não o acompanharem no seu entusiasmo de fazer coisas. Começou a viver sozinho aos 19 anos. Teve de trabalhar para pagar casa. Diz que conquistou a família saindo de casa. A mãe foi a pessoa que mais o marcou e quem o conheceu verdadeiramente. Gosta que as pessoas percebam o que podem tirar dele. Esteve quase a seguir uma carreira desportiva quando começou a ser convidado para dar formação, para treinador, e foi quadro da Direcção Geral dos Desportos, além de ter dado aulas de Matemática e Estatística.

Depois do desânimo da passagem pela divisão de transportes postais dos CTT a passagem pela Rodoviária Nacional fez com que os transportes se colassem à pele. Enquanto judoca coleccionou muitas lesões. Uma vez veio de Nápoles [Itália] com mais quatro colegas num carro com uma clavícula partida. O seu clube do coração é o Belenenses porque desde pequeno que o pai o levava a ver os jogos de futebol. Mas não tem paciência para ver jogos na televisão. É presidente do conselho fiscal da Associação de Atletas Olímpicos.

Gosta de fazer coisas. Está sempre a idealizar projectos. Apesar de estar de saída para o descanso de uma vida de trabalho empenhou-se em deixar as oficinas da empresa em Santarém requalificadas, com mais luz, mais condições de trabalho e de apoio aos mecânicos como um refeitório que não existia. Em criança sentiu o que era a marginalização ao contrário. Na escola primária era conhecido pelo miúdo dos prédios que tinha melhores condições de vida do que a grande maioria dos seus colegas estudantes que viviam noutra realidade de Campolide, a das más condições de habitação. A escola impedia-o de almoçar na cantina porque não vivia numa barraca.

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