É fundamental proteger os direitos dos outros para não vivermos numa sociedade individualista, egoísta e desumana
A Inteligência Artificial está a ser usada em mecanismos que, de forma desregulada e servindo interesses económicos, colocam o seu desenvolvimento num crescendo desproporcional à utilização da inteligência humana.
Consegue explicar, com um ou dois exemplos, como acha que seria a sua vida, a nível pessoal e profissional, num país não democrático?
Para começar não poderia estar a responder a este questionário a dizer aquilo que penso sem o risco de me ser cortada a palavra. E a minha família pagaria parte da factura vivendo com medo do que lhes poderia acontecer como consequência daquilo que eu diria. Depois, num país não democrático, não há igualdade de oportunidades. Essas ficam reservadas aos seguidores do regime e a competência ou o mérito não são critérios para nenhuma oportunidade profissional ou de ascensão social.
O que foi para si o 25 de Abril de 1974?
Tinha 12 anos quando se deu o 25 de Abril. Tenho bem presente como era a vida da minha família e dos portugueses antes daquele dia de abertura escancarada da porta da esperança e da janela dos sonhos. Para além das liberdades conquistadas, a generalidade da população foi saindo de um estado de pobreza profundo e de um analfabetismo dominante. Éramos um país atrasado, a viver numa economia fechada e sem desenvolvimento, com um sistema de saúde que não existia e que causava uma mortalidade infantil de terceiro mundo e uma baixa esperança média de vida.
Se tivesse que classificar a classe política que vai festejar os 50 anos do 25 de Abril na Assembleia da República que pontuação lhe dava de 1 a 10?
Não acho que seja adequado fazer uma avaliação dessa forma tão directa. Não para ser politicamente correcto mas porque tal avaliação tem várias variáveis e o que devemos julgar são actos e não pessoas. Avaliando o que a classe política fazia nos anos pós 25 de Abril, comparativamente à de hoje, e tendo em conta o conhecimento das matérias e dos diplomas; a entrega à causa pública; a preocupação com o bem geral da população, por exemplo, a minha nota é de oito para os primeiros políticos e de quatro para os segundos.
Na Constituição da República estão inscritos os direitos e os deveres dos cidadãos. É capaz de indicar dois ou três dos nossos deveres constitucionais?
Refiro em primeiro lugar, respeitar os direitos dos outros, por ser um dever fundamental que constantemente vejo negligenciado porque cada um está mais ciente dos seus direitos sem pensar que eles estão limitados ao respeito pelos direitos dos outros. Em segundo lugar, o dever de cumprir a Lei. Não termos introduzido o ensinamento das leis como base da nossa cultura ao longo da vida e da aprendizagem escolar leva a comportamentos que não respeitam os outros, com a justificação de desconhecimento da lei, ou que a mesma foi mal feita. E isso leva à confusão entre liberdade e libertinagem. Em terceiro refiro o dever de proteger o nosso semelhante. A vida não pode ser “olho por olho dente por dente” e “cada qual por si”. Hoje precisa o outro, amanhã precisamos nós. Não proteger o nosso semelhante é sinónimo de uma sociedade individualista, egoísta e, consequentemente, desumana.
Os órgãos de comunicação social têm que estar registados e os seus responsáveis identificados. E têm que cumprir leis, nomeadamente a lei de imprensa. Deve continuar assim ou os jornais devem ter maior liberdade?
Na minha opinião, deve continuar assim. Não cumprir tais exigências não significará mais liberdade. Cada um deve ser responsável pelo que diz e pelo que faz. O anonimato em qualquer publicação se, por um lado, pode ser uma segurança para quem as publica, por outro lado abre uma porta para notícias ou trabalhos não devidamente fundamentados e, como tal, não salvaguarda o direito que os visados também têm ao relato verdadeiro dos factos.
Há cada vez mais pessoas que optam por ser informadas através do que lhes chega pelas redes sociais. É o seu caso?
Também é o meu caso. No entanto, sou muito selectivo e só leio as notícias de órgãos de comunicação social fidedignos. O futuro será decerto com um peso mais acentuado das redes sociais. Cerca de 80% da informação que hoje consumo é através das redes sociais (e outros 15% divididos pela televisão e rádio). Os dispositivos electrónicos serão cada vez mais sofisticados, tornar-nos-ão cada vez mais uma extensão dos teclados e dos sistemas de voz assistidos pelas máquinas. No futuro próximo haverá uma dependência generalizada destes dispositivos.
A Inteligência Artificial está presente, cada vez mais, na nossa vida. Está confortável com o que se está a passar?
Está presente e não nos apercebemos da sua real dimensão. Nos sistemas de comunicação, em processos de trabalho, e até no comportamento das pessoas que, de tanto recorrer a que artificialmente algum mecanismo faça algo por elas, perdem a capacidade de raciocínio ponderado. Não estou confortável porque em vez da IA ser um apoio ao desenvolvimento intelectual está a ser usada em mecanismos que, de forma desregulada e servindo interesses económicos, colocam o seu desenvolvimento num crescendo desproporcional à utilização da inteligência humana. Salvaguardando isso, a sua aplicação, por exemplo, na área da Saúde e Medicina pode ser extraordinária, embora nunca substitua a mão, os olhos, o cérebro e, sobretudo, o sentimento humano.
As alterações climáticas são uma realidade ou há muito exagero no que é apresentado?
Vale a pena alterarmos muitos dos nossos comportamentos apesar de por vezes sentirmos que eles em muito pouco têm impacto, comparado com as consequências das guerras que estamos a assistir, dos incêndios em grande escala ou da poluição cada vez mais crescente dos países mais desenvolvidos. O pouco que cada um de nós faz é um dever de consciência para com as gerações futuras.
Qual foi o último texto que leu em O MIRANTE de que gostou?
Aprecio especialmente a rubrica de entrevistas e testemunhos. Encontramos sempre um pouco de nós nos outros. Uma das que me recordo foi a de uma jovem que se tornou a primeira mulher bombeiro profissional em Tomar. Mas também outra mais recente de um homem, com uma amputação, que não deixou que essa limitação lhe roubasse o seu sonho da música. São histórias inspiradoras. Afinal, boas notícias podem ser notícias!
O que é que não lhe perguntamos que gostava de responder?
Não me perguntaram se os portugueses conseguirão festejar os 50 anos do 25 de Abril com o mesmo sentimento (ou próximo) do vivido em 1975. A falta de informação, desde o ensino nos primeiros anos de escola, sobre o que foi a evolução do país graças ao 25 de Abril fará com que a pouco e pouco, para muitos, esta data se transforme somente em mais um feriado. Infelizmente, muitas das vezes só damos valor ao que temos quando o perdemos. Espero que as novas gerações não tenham de perder liberdades para entenderem o real privilégio do que lhes tem sido legado.