Quem dirige uma instituição social tem de envolver toda a equipa no projecto
A Cerci Flor da Vida é uma instituição que marca a diferença na área da deficiência com valências em Azambuja e Alenquer e que se prepara para entrar no concelho do Cartaxo. O presidente da direcção, José Manuel Franco, fala na falta de respostas para as pessoas com deficiência, nos apoios que são insuficientes e alerta que gerir uma instituição de cariz social implica espírito de liderança e trabalho em equipa.
A inclusão continua a ser uma miragem para as pessoas com deficiência?
Não diria uma miragem, mas falta ainda um trabalho transversal da sociedade e em especial do Estado em conjunto com as instituições para pessoas com deficiência. Estas têm esse propósito muito claro e operacionalizado no seu trabalho diário mas depois falta o resto: a integração na sociedade, no mercado de trabalho. Nós, Cerci, tentamos fazer um trabalho de proximidade nomeadamente com as escolas, com as autarquias e empresas. Inclusão é a palavra-chave para uma instituição deste cariz.
É fácil chegar às empresas e estas acolherem pessoas com deficiência?
Felizmente há alguma abertura, mas não é fácil. Temos parceiros, empresas, câmaras, juntas de freguesia...vão-se conseguindo alguns resultados. O rácio de pessoas com deficiência que ficam a trabalhar nas empresas é até razoável.
O que falta fazer neste país para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas?
Tem de haver grande articulação e responsabilização de todos os envolvidos. Já que o Estado, nesta área, não tem forma de assegurar o serviço público necessário devia preocupar-se com a estabilidade destas instituições que asseguram esse serviço público e garantir os meios de financiamento para que as instituições não andem a pedir esmolas à sociedade para garantir o seu projecto. E não, não faz sentido o interior e o litoral terem os mesmos critérios de financiamento... o que proponho é que haja uma maior proximidade com as instituições e que haja uma diferenciação positiva.
O actual modelo de apoio da Segurança Social a instituições como a Cerci está ajustado à realidade de custos com utentes e funcionários?
Nos dois anos passados houve preocupação por parte da tutela em fazer actualizações face ao aumento de custos e, em Dezembro, voltou a haver actualização, mas ficou aquém. Foi uma decepção porque os encargos aumentaram muito.
A oferta existente na região está na sua opinião adequada à procura?
Falo do caso concreto da Cerci: somos a única IPSS no concelho na área da deficiência com listas de espera que nem com a construção do novo complexo social e da saúde vamos satisfazer. Para a valência de lar residencial temos uma lista na ordem das 50 inscrições e vamos criar vagas de 18, portanto, vai continuar a haver um défice de resposta. E há casos que precisam de resposta urgente.
Há muito que a Cerci extravasou as fronteiras deste concelho no que toca à área de actuação.
Sim, a Cerci tem uma lógica territorial e não local. Pertencemos a três concelhos locais de acção social: Alenquer, Azambuja e Cartaxo. Em Vila Franca de Xira não o integramos mas devíamos porque temos utentes desse concelho e apoiamos o Agrupamento de Escolas D. António de Ataíde, em Castanheira do Ribatejo.
Faltam apoios para que as instituições possam alargar as suas respostas ou o problema é outro?
Faltam apoios, claro. Em vez de andarmos nós, instituições, a puxar pela administração central, esta é que devia puxar por nós, chegar com um projecto já feito e aprovado e com meios para ser executado. Mas não... por exemplo, no Complexo Social e da Saúde da Quinta das Rosas mais de 50% do financiamento é nosso: bancário e de capitais próprios. Temos garantia de financiamento de menos de metade. Além disso é gritante estarmos a 30% da construção daquele projecto e até ao momento já termos lá colocado mais de milhão e meio de euros e só termos recebido à volta de 300 mil euros de financiamento. Claro que também é importante que as instituições tenham capacidade de gestão e de desenvolvimento de metodologias que permitam responder a projectos.
Em 2018 a Cerci pedia ajuda para evitar a extinção e em 2023 dá início a uma obra com um investimento na ordem dos cinco milhões de euros de base. Como é que se dá esta reviravolta?
É simples, em tempos de crise o que é preciso é gerir bem o orçamento, planear e investir porque sem investimento não há futuro. Em Novembro de 2009 a instituição apresentou um pedido de empréstimo para pagar o subsídio de Natal que não foi aceite. Passado um ano a mesma entidade bancária passou-nos uma capacidade de financiamento de um milhão de euros. Mudou o modelo de gestão e as pessoas e isso faz a diferença.
Pode dizer-se que reconquistaram a 100% credibilidade junto do Estado e da sociedade?
Absolutamente. E nisso muito agradeço ao jornal O MIRANTE, à sua direcção e aos seus jornalistas, terem tido este reconhecimento que é uma das provas de que a credibilidade da instituição está no devido lugar.
Esta não foi a primeira nem será a última instituição à beira da extinção e a ter de recorrer ao fundo de socorro da Segurança Social. A raiz do problema está na falta de formação de quem as dirige?
Em boa parte sim. Uma instituição tem de ter uma liderança forte e quem a lidera tem de ter perfil para o fazer. A própria Segurança Social devia ter um filtro e exigir um certo perfil aos candidatos que concorrem à liderança de uma instituição de cariz social e, depois, acompanhá-los regularmente, não só quando há problemas. O que mais me custa é ouvir falar na primeira pessoa do singular quando quem dirige uma instituição tem de falar sempre na primeira pessoa do plural e envolver toda a equipa na sua metodologia de projecto.
É favorável à remuneração dos dirigentes?
Absolutamente. As pessoas que estão na liderança das instituições têm de ter dois papéis: o da direcção e o executivo. Tal como nas grandes organizações tem que haver uma administração e uma administração executiva. A pessoa que está à frente de uma instituição pode perfeitamente manter-se com a função de órgão social e, ao mesmo tempo, na de gestor e ser remunerado por esta segunda. Sem remuneração não se conseguem pessoas jovens.
O Complexo da Quinta das Rosas prevê a criação de 76 postos de trabalho. Já iniciaram o processo de contratação e formação?
A obra deverá estar concluída em Outubro de 2024, com funcionamento previsto para Janeiro de 2025 e, claro, já iniciámos o processo de formação. Numa parceria com o IEFP está a decorrer um curso de formação profissional na área de auxiliar de acção médica. Há 20 a fazer formação para que depois possamos recrutar.
Ainda está a contar com o prometido apoio da Câmara de Azambuja, que poderá chegar aos 350 mil euros, para esta obra?
No nosso caso se chegar aos 350 mil euros é dar 87 mil por cada uma das quatro respostas sociais que vamos criar. Esperava da câmara 350 mil por resposta social e que nos tivessem dado outros apoios. Por exemplo, que ao invés do direito de superfície tivessem dado o terreno onde estamos a fazer um investimento de sete milhões de euros.
No ano passado a Cerci estendeu a mão ao município viabilizando o projecto Bata Branca para atenuar a carência de médicos. Porque se sentiram na obrigação de agir perante um problema que afectava mais de 80% da população do concelho?
Demos a mão às pessoas porque precisavam e a autarquia deu a mão ao projecto com um financiamento por horas de consultas. Se tínhamos feito alteração aos estatutos para ter intervenção na área da saúde tínhamos obrigação de o fazer. Houve manifestações na Assembleia da República, à porta do centro de saúde, reuniões com ministros e tudo se manteve na mesma durante dois anos. Depois a Cerci interveio e conseguiu dar resposta a um problema.
Que encargos trouxe para a instituição?
Fazer uma gestão de grande proximidade acarreta custos, é o tempo das pessoas que está em causa. Além disso quando os médicos nos dizem que faz falta um equipamento ou consumível urgente nós garantimos.
Sentem o reconhecimento pelo esforço que estão a fazer?
Por parte das pessoas sim, por parte das instituições tem havido. O próprio director da Unidade Local de Saúde está muito satisfeito porque assegurámos, só em Dezembro, 1.200 consultas a pessoas que já não foram para as urgências. Se recuarmos, desde o início de Junho de 2023 assegurámos à volta de 5.500 consultas, de seis passámos para 12 médicos, iniciámos um programa de consultas materno-infantil, entre outros. A avaliação que fazemos é muito positiva, até pelos testemunhos que vamos recolhendo.
Reerguer-se de um poço de dívidas, recuperar a credibilidade e atirar-se a novos projectos
Fundada em 1982 a Cerci Flor da Vida - Cooperativa de Educação, Reabilitação, Capacitação e Inclusão - tem como missão prestar os serviços adequados às pessoas com deficiência e suas famílias, no âmbito da prevenção, educação, reabilitação, inserção social e profissional promovendo a sua qualidade de vida e o exercício da sua cidadania.
Com sede em Azambuja a sua resposta extravasa, há muito, os limites daquele território acolhendo utentes dos concelhos de Alenquer, onde a instituição tem um Centro de Actividades Ocupacionais, de Vila Franca de Xira e do Cartaxo, para onde se prepara para crescer com a criação de uma nova resposta social, a de habitação colaborativa e comunitária cujo projecto prevê a criação de 11 apartamentos para 30 pessoas em situação vulnerável. Uma nova valência para juntar ao Complexo Social e da Saúde da Quinta das Rosas, que está em construção e vai criar um lar residencial, uma estrutura residencial para pessoas idosas com grandes dependências, um centro de actividades e capacitação para a inclusão, serviço de apoio domiciliário para pessoas com deficiência e uma unidade de cuidados continuados integrados de longa duração e manutenção.
Mas esta instituição é muito mais do que a concretização bem sucedida de projectos, a Cerci Flor da Vida é uma verdadeira família onde os utentes aprendem, ultrapassam dificuldades, criam laços afectivos e, acima de tudo, são felizes ao lado dos mais de 80 profissionais que os cuidam diariamente. A Cerci é também terapia diferenciada, formação profissional, intervenção precoce, capacitação para a inclusão e um porto de abrigo para os seus 410 utentes. Desde 2023 passou também a ser a tábua de salvação para o problema da falta de médicos e família no concelho de Azambuja com a implementação do projecto Bata Branca, através de um protocolo com a Administração Central dos Serviços de Saúde e a câmara municipal, que conta com 12 clínicos ao serviço.
Depois de um período conturbado, em que esteve à beira de fechar portas, a Cerci Flor da Vida conseguiu reerguer-se, saldar as suas dívidas que ascenderam aos 600 mil euros, e assim, garantir a continuidade das respostas diferenciadas que presta na área da deficiência. Pela direcção de José Manuel Franco, que cumpre o segundo mandato, esta instituição foi ainda mais longe e atreveu-se a inovar e investir no seu futuro e no de todos aqueles que um dia irão beneficiar das suas novas valências. Em breve a Cerci será, como diz o seu presidente, “uma grandiosa referência na gestão com 170 trabalhadores, a maior instituição do concelho de Azambuja e de alguns dos concelhos limítrofes.