O MIRANTE | 20-03-2025 19:00

Casa Mãe: a instituição que nasceu de uma herança e que é porto de abrigo quando a família falha

Casa Mãe: a instituição que nasceu de uma herança e que é porto de abrigo quando a família falha
ESPECIAL PERSONALIDADES DO ANO
Padre António José Cardoso é o presidente da direcção da Casa do Pombal - A Mãe de Azambuja

Personalidade do Ano Cidadania - Casa do Pombal - A Mãe

A Casa do Pombal - A Mãe tem a difícil, mas gratificante, missão de acolher bebés, crianças e jovens que por decisão judicial são retirados às famílias. O conceito de ser um espaço que acolhe de braços abertos com a consciência de que uma mãe e um pai são insubstituíveis, faz desta instituição uma referência social. Esta entrevista ao presidente da direcção, o padre António José Cardoso, que contou com a participação da directora técnica Maria João Vaz e da supervisora e psicóloga Sara Lopes, torna evidente a dedicação, o humanismo e a luz que se espalha pelo edifício e jardins desta instituição de Aveiras de Cima, no concelho de Azambuja.

Com que propósito decidiu criar a Casa do Pombal - A Mãe?
Quis responder a várias manifestações de crianças que me transmitiram no final da colónia de férias, que a Paróquia de Aveiras de Cima tem há muitos anos o encanto de estarem naquele lugar. Diziam que a colónia era a sua segunda mãe. Na hora da partida uma menina agarrou-se às pernas de uma mesa e não queria ir. Queria ficar naquele lugar onde encontrou carinho. Isto fez vir ao de cima um pensamento muito bonito que deu origem a um sonho, e com um grupo de monitores que há muitos anos me acompanham pensámos que podíamos fazer uma colónia, não de 15 dias, mas de todo o ano. E foi assim que começámos, com o propósito de acolher e cuidar de crianças e jovens.
Como é que conseguiu recursos para instalar a instituição?
A minha irmã mais velha vivia com o marido numa vivenda no Estoril e quando se aperceberam que estava a chegar a hora de irem para o céu, disseram-me que a casa ficava para a minha Obra. Vendemos a propriedade e com mais alguns donativos comprámos esta quinta onde está o projecto. Tivemos muitas ajudas de voluntários, inclusivamente de uma arquitecta, e construiu-se esta casa que é luz no coração destes meninos. Curiosamente, o meu cunhado chamava-se Pombinho, não tinha filhos e esta quinta é a Quinta do Pombal e aqui estão os pombinhos. Não são coincidências...
Estamos a falar de uma instituição ligada à Igreja Católica. É um espaço estritamente católico, ou há liberdade religiosa?
Há lugar para todos. Já tivemos vários credos, evangélico, muçulmanos, agnósticos também.
Neste momento quais são as crianças que acolhem?
Temos neste momento 20 crianças, que é o máximo da lotação da instituição. O mais novo tem um ano, mas já tivemos um bebé com 17 dias. Dantes, aos 14 e 15 anos iam para lares de infância e juventude, mas agora temos a alegria de poderem cá continuar, até terem o seu projecto de vida definido. Temos uma menina que está na faculdade em Peniche e um jovem que vai este ano entrar para a universidade e que quer ir para Coimbra. Sendo um com 20 anos e outro com 19 são como os irmãos mais velhos, figuras de referência para os mais novos.
Os que deixam a Casa continuam a manter contacto com a instituição, com os outros utentes e profissionais?
Quem entrou nesta casa fica sempre no nosso coração. Ouvimos muitas notícias de crianças e jovens que fogem das instituições, aqui nunca tivemos uma fuga em 20 anos. Vêm visitar-nos, quererem cá ficar aos fins-de-semana e passar férias. Alguns, já com filhos, aparecem cá com os meninos. Ainda há pouco recebemos o telefonema de uma menina que está em França a lamentar não ter conseguido vir festejar os 20 anos da sua Casa Mãe.
Qual é o sentimento quando se tem de receber uma criança?
O dia do acolhimento é difícil para toda a gente. É um impacto muito grande para a criança que chega a um sítio onde não conhece ninguém e que muitas vezes traz a idealização de que vem para um lugar frio e escuro. Mas a nossa Casa Mãe, com a sua luz, tira-lhes logo uma carga de cima. Uma casa com um jardim como o nosso é um oásis e nós somos os braços abertos que acolhem.
Quais os principais motivos para as crianças serem retiradas às famílias e acolhidas na Casa do Pombal?
Há de tudo um pouco, mas sobretudo violência física e psicológica e negligência parental. Mas há de tudo, desde abuso sexual a tráfico de crianças.
Vivem as histórias que estes miúdos carregam?
Claro! Mas vivemos com o equilíbrio e distanciamento necessário para não sermos apanhados pelas situações. As histórias não podem tomar conta de nós, temos de saber analisá-las e geri-las, encontrar o sentido e a luz no meio de tanta sombra e escuridão. E esse é um trabalho fantástico que se faz aqui. Temos transformado vidas nesta casa.
O que é que diz às crianças quando chegam à casa?
Faço parte desse acolhimento. Digo-lhes palavras que tranquilizem, mas mais do que as palavras é preciso dar espaço à criança que não quer falar, não pressionar, até que vai chegar o momento em que acaba por ser ela a procurar conversar.
Nestes 20 anos há algum caso que o tenha marcado particularmente?
Não podemos seleccionar um porque quem entra aqui entra no nosso coração. Todos nos marcam, todos.
“Uma criança para sentir o valor da vida, precisa de quem lhe faça bater o coração e saber que a vida passa por aí”. Esta frase foi dita pelo senhor prior. Como se põe um coração triste a bater de alegria?
Fazendo-o sentir que é querido para quem está com ele, ou seja, a criança perceber que apesar de toda a sua tristeza tem ali um colo, um sorriso, um suporte, um ombro amigo. Aquele encostar da cabeça ao nosso braço é tudo, é o obrigado que não dizem, mas manifestam quando sentem que não estão sós, que têm um amparo, um porto de abrigo. Uma casa de amor é um porto de abrigo. Às vezes saem para o mar alto mas sabem sempre que aqui têm esse porto, que aqui estão seguros. Tudo isto se deve muito à equipa que analisa caso a caso.
Como é que se aproxima o colo de uma instituição ao de uma família?
Às vezes é difícil, mas temos feitos positivos, como a própria família sentir que a casa é um prolongamento. Quando uma criança é retirada, a mãe fica muitas vezes revoltada e zangada connosco, que somos a instituição que vai dar a mão para solucionar a situação que essa família criou. Mas aí entra a nossa capacidade de compreendermos a revolta da mãe que fica sem o filho e, ao mesmo tempo, fazer com que perceba que tem aqui a ponte. A Casa Mãe é a ponte curativa da revolta e da dor da ausência que ficou aquela mãe a quem foi retirado o filho.

HÁ PROCESSOS QUE NÃO CORREM BEM E FAZEM-SE PERSEGUIÇÕES À INSTITUIÇÃO E A QUEM NELA TRABALHA

Há crianças que regressam para as suas famílias?
A grande maioria regressa às famílias. Quando são detectadas negligências há um trabalho que se faz com a criança e família, quer aqui quer na equipa que acompanha o caso lá fora. É feita a reparação das competências parentais. Mas há situações em que não é possível essa reintegração familiar, há processos que não correm bem e em que as famílias fazem perseguições à Casa do Pombal e a todos os que trabalham na instituição.
As famílias visitam regularmente as crianças?
Com toda a orientação que a Casa dá e que recebemos do processo que acompanha a criança damos o espaço para estarem em família. Alguns pais chegam a estar tardes inteiras com os filhos. Mas também há pais, muitos, que faltam às visitas. Pais com comportamentos aditivos que se vão distanciando. E essas são situações que doem a todos, porque aqui somos uma família alargada. É muito duro ver um miúdo à espera da hora da visita e não aparecer ninguém. Porque criam expectativas e idealizam e isso é o mais difícil de reparar, quando se idealiza uma figura parental que não corresponde. Nós somos figuras de referência, não parentais, não tentamos substituir a parentalidade de alguém.
Portugal é o país da Europa com mais crianças institucionalizadas de acordo com um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância divulgado em 2024. O que é que está a falhar?
Nós procuramos não falhar. Aliás, as instituições particulares de solidariedade social são subsidiárias, fazem aquilo que os governos não são capazes de fazer. São o preencher de uma lacuna. E oxalá que não vamos para pior porque os indicativos que temos é de que a Europa está em risco de perder a sua dimensão social. O mundo está a meter-se numa bolha materialista, exploradora, lucrativa e agressiva, alheando-se dos problemas reais e do sofrimento. Oxalá que o Estado tenha a coragem de investir mais nas intervenções de primeira linha, porque são essas que fazem a diferença e que não conseguem dar resposta à quantidade de casos que têm.
Retirar uma criança à família devia ser sempre a última opção?
Retirar uma criança do meio familiar é a última opção. Mas há que ter a coragem de o fazer quando tudo o resto falha. Porque a coragem também é uma dimensão do amor. Está em jogo o futuro de uma criança, que se estiver em perigo tem de ser acolhida. Mas cada vez mais é a última opção, uma criança não é retirada por negligência de higiene, fome, falta de dinheiro, nada disso. As situações que tem surgido e que levam a institucionalizar crianças são de casos cada vez mais graves.

Uma equipa que é colo e o ‘milagre’ que salvou o fecho de portas

Fundada há 20 anos, a Casa do Pombal - A Mãe nasceu do desejo de António José Cardoso, pároco em Aveiras de Cima desde 1967, em ajudar os que não têm uma família funcional, os que são filhos de ninguém ou órfãos de pais vivos. Ao receber uma herança de família deu forma ao sonho, adquirindo a Quinta do Pombal, onde se situa a instituição. Nesta casa de acolhimento residencial, que é porto de abrigo para 20 bebés, crianças e jovens em risco, os funcionários são como família. Dão amor, carinho, ensinam, educam, mas sem a pretensão de quer substituir os pais e mães daqueles que acolhem de braços abertos.
No total a instituição tem 18 profissionais ao serviço, entre técnicos superiores, auxiliares educativos e as cozinheiras que, de vez em quando, vêem uma batata frita ser agarrada por mãos pequenas antes de tempo. Tal como acontece numa banal cozinha de família onde há amor e brincadeiras. Mas conseguir assegurar um quadro de pessoal qualificado não é fácil. Trata-se de um trabalho duro em termos técnicos e emocionais, onde a equipa técnica não vive fechada em gabinetes, mas procura assegurar a rotina das crianças das 10h00 às 17h00. Porque só assim, acreditam, se consegue transmitir uma estrutura familiar.
Para se ver a forma como funciona a instituição, se for preciso os profissionais deixam os relatórios nas gavetas à espera de serem terminados porque é preciso dar colo a um bebé. É o olhar para as necessidades dos que acolhem, alguns com problemas de saúde mental e que precisam ainda mais desta proximidade. A associação Casa do Pombal - A Mãe tem 350 sócios e beneficia da bondade constante da comunidade do concelho de Azambuja. As doações de roupa e alimentos, por mais pequenas que sejam, fazem a diferença no orçamento anual que ronda os 800 mil euros. Conta ainda com apoios alimentares de empresas locais e com a verba mensal que resulta da venda de coscorões feitos por um grupo de senhoras, conhecidas como as ‘avozinhas’.
Associação de contas certas, já passou por momentos financeiramente complicados na altura em que a Câmara de Azambuja deixou de atribuir o apoio anual, que agora ronda os 20 mil euros. Em risco de fechar portas devido ao défice acentuado, a casa salvou-se quase que por milagre com uma doação de 40 mil euros atribuída por decisão judicial da massa insolvente de uma empresa, por sugestão de uma Oficial de Justiça que passava a ferro, a título voluntário, na instituição. Aqui o voluntariado é bem-vindo, sempre que os processos do grupo acolhido o permitem e quando há propostas que tenham um propósito como o ensino da música, actividade física, apoio escolar, ou ajudar à manutenção do edifício.

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