Opinião | 23-07-2020 07:09

A pandemia ajuda a matar a democracia (2)

A democracia como a conhecemos antes da pandemia também está em confinamento. Vamos empobrecer pessoalmente mas, mais grave do que isso, vamos ver empobrecer lentamente as nossas instituições porque vai haver menos cidadania activa e, logo, menos vigilância sobre os oportunistas, os sendeiros, os sabujos que não vão perder a oportunidade de mostrar a sua natureza.

Recupero o título de uma crónica de Junho para voltar ao tema da pandemia e do que vivemos hoje graças a um vírus que voltou a fazer do planeta Terra uma casca de noz e do povo, ricos e pobres, um rebanho de ovelhas tresmalhadas. A velha máxima de que em tempos de crise só devemos começar a comprar propriedades quando o sangue correr nas ruas aplica-se igualmente, em termos de crueldade, ao que hoje se passa com a grande maioria dos cidadãos que precisam da administração pública para renovarem o livrete de um carro ou simplesmente para tratarem de um documento que lhes faz tanta falta como o pão para a boca.
Na grande maioria dos casos a administração pública não funciona, está em teletrabalho, só alguns advogados conseguem abrir portas e têm acesso aos serviços; numa palavra: a democracia para alguns cidadãos está em período de confinamento.


Quanto mais afundarmos na crise mais os bancos tomam conta da nossa economia; quanto mais precisarmos de financiamento para mantermos as nossas empresas, ou as nossas responsabilidades com a compra da casa ou do carro, ou da prestação do lar para os nossos familiares, mais ficamos nas mãos dos agiotas e menos tempo dedicamos a exercer a cidadania. É nestas alturas que o “é fartar vilanagem” ganha dimensão; por cada cem cidadãos apanhados pelos efeitos da pandemia haverá meia dúzia deles que espreitam a oportunidade de os sugarem até ao tutano, ao serviço dos bancos mas também ao serviço do Estado, atrás de um balcão de penhores mas também pela calada da noite.


No início da pandemia muito se escreveu e falou sobre o regresso ao campo e à agricultura familiar. Pura ilusão. Ao “nada será como dantes” vai vencer outra vez o “tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. O interior vai continuar a despovoar-se, o casario vai continuar a desvalorizar-se, o património vai valer cada vez menos e deixar mais pobres quem apostou em recuperar as suas casas, em manter as suas propriedades, em investir o seu pé-de-meia na economia local. “O capitalismo que mata”, nas palavras do Papa Francisco, está cada vez mais inteligente e protegido. Os escândalos financeiros à volta das instituições bancárias, as facilidades concedidas às empresas que se servem dos paraísos fiscais, empobrecem cada vez mais o Estado e obrigam ao aumento de impostos sobre os cidadãos indefesos que trabalham no duro para não morrerem na praia.


Vamos empobrecer pessoalmente mas, mais grave do que isso, vamos ver empobrecer lentamente as nossas instituições porque vai haver menos cidadania activa e, logo, menos vigilância sobre os oportunistas, os sendeiros, os sabujos que não vão perder a oportunidade de mostrar a sua natureza.


Para animar o circo em que se transformou a sociedade capitalista, o Benfica e a Cristina Ferreira enchem os noticiários por causa das transferências milionárias. A luta pelas vitórias nos relvados, e pelas audiências nas televisões, faz esquecer o que nos espera com a evolução do escândalo do BES, o financiamento da TAP, a discussão à volta do contrato dos CTT para o serviço postal universal que termina em Dezembro de 2020, a aposta cada vez mais duvidosa no novo aeroporto no Montijo, a regularização do rio Tejo, o ataque às culturas intensivas, a falta de água nas torneiras e as políticas agrícolas e florestais que deviam ser um desígnio nacional. JAE.

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