A corrupção em pessoa
Portugal é um pequeno país cuja organização política e administrativa, para além de o tornar ainda mais pequeno, torna as pessoas pequeninas, porque promove e fomenta a corrupção, a inveja, a mediocridade e o caciquismo. O caciquismo, em boa verdade, não é sinónimo de corrupção. O caciquismo é a corrupção em pessoa.
A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção apresentada pelo Governo vem na mesma linha das estratégias anteriores e resume-se no seguinte: criar a aparência de que se combate a corrupção, para permitir que a actividade se continue a desenvolver e a florescer.
Como toda a gente está farta de saber, a criminalização do enriquecimento ilícito, a delação premiada e a retenção das mais-valias nas operações urbanísticas são as três medidas-chave no combate à corrupção. Medidas essas que nenhum Governo português é capaz de aprovar, sob pena do Estado português se desmoronar. Até se pode legislar sobre alguma destas medidas, mas sempre com o cuidado extremo de a medida nunca poder ser posta em prática ou, em último caso, haver a garantia de que esbarra no Tribunal Constitucional.
E quanto mais se legislar, melhor. A Estratégia Nacional passa sempre por aqui, uma vez que os nossos governantes sabem perfeitamente que o excesso de leis é o habitat por excelência da corrupção. Como dizia Tácito, “quanto mais corrupta é a República, maior é o número de leis”. Por essa razão, governantes e deputados, todos os dias, numa azáfama verdadeiramente diabólica e militante, produzem leis em catadupa, para garantirem uma República com níveis cada vez mais elevados e sofisticados de corrupção.
Significa isso que as leis não são importantes? Como explicou Platão, o sentido cívico de um povo é mais importante do que qualquer lei: "Um povo digno não carece de leis que lhe digam como agir responsavelmente; ao passo que um povo indigno encontrará sempre maneira de contornar as leis."
Mas, nos países mais civilizados, não existe também corrupção? Claro que existe. O problema é que, em Portugal, a corrupção é endémica, estrutural e sistémica.
O 25 de Abril, em vez de ter desmantelado de vez o caciquismo dos tempos de Eça de Queirós e da I República, recuperou-o, dando-lhe pomposamente o nome de Poder Local, e ergueu sobre ele todo o sistema político e institucional do Portugal democrático. Ora, o caciquismo é, por natureza, um sistema clientelar, tentacular e corrupto. Não é, pois, possível combater a corrupção, quando a corrupção é o próprio sistema.
Para vivermos num país equilibrado, quer do ponto de vista estrutural, quer do ponto de vista da defesa do estado de direito, um presidente de câmara, para poder ter o poder que efectivamente tem, a sua autarquia teria, obrigatoriamente, de ter outra dimensão. Não é possível garantir a independência do exercício do cargo de presidente da câmara, nem a racionalidade económica e a boa gestão dos recursos, em autarquias com menos de quinhentos mil eleitores, o que não significa, saliente-se, o encerramento dos serviços públicos prestados actualmente pelas câmaras municipais.
Não se deve confundir serviços de proximidade com políticos de proximidade. Os serviços devem estar próximos das pessoas, mas os eleitos têm de estar necessariamente a uma distância de segurança que os impeça, por um lado, de controlar com o livro de cheques da autarquia o pequeno colégio eleitoral de que depende, hoje, a sua reeleição e, por outro, de ficar reféns das relações de vizinhança, familiares e de amizade que acabam, inevitavelmente, por se sobrepor à própria lei, que é sistematicamente violada nas autarquias locais, única forma de não pôr em causa a sua reeleição.
Portugal é um pequeno país cuja organização política e administrativa, para além de o tornar ainda mais pequeno, torna as pessoas pequeninas, porque promove e fomenta a corrupção, a inveja, a mediocridade e o caciquismo. O caciquismo, em boa verdade, não é sinónimo de corrupção. O caciquismo é a corrupção em pessoa.