Opinião | 24-12-2021 09:23

A culpa é de quem tem a chave do Palheiro

Quem denuncia fica completamente isolado e desprotegido, até porque não há uma única testemunha que queira corroborar a denúncia. Ninguém quer depor contra quem tem a chave do palheiro. Por sua vez, quem tem a chave do palheiro consegue arranjar as testemunhas que quiser para jurarem que é mentira o que toda a gente sabe que é verdade. Veja-se o que se passou com a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk no SEF.

Na justiça portuguesa, existe hoje um brocardo lusitano, adaptado do Direito Romano, que reza assim: “Quod non est in audio non est in mundo”. Ou seja, os abusos de autoridade só existem se houver gravação que seja reproduzida nas televisões. Isto vem a propósito do que se passou em Odemira com as agressões aos imigrantes por militares da GNR. Como existe um vídeo, deixou de ser possível fingir que não se sabe, pelo que não existe outra saída a não ser tentar isolar e empolar o caso, dando-lhe contornos racistas, para que se pense que se trata de um caso absolutamente excepcional que não põe em causa a honorabilidade das instituições.

Acontece que nem o caso é excepcional como também a motivação não é racista. Existe um ditado popular que explica este tipo de comportamento que se tornou um padrão nas instituições portuguesas, seja nas forças de segurança, nos tribunais, nas autarquias, na Administração Pública, nas associações e nos clubes, etc. etc. etc.: “se queres ver um pobre soberbo, dá-lhe a chave do palheiro.

Também é verdade, como disse há muitos anos Edmund Bürke e, mais tarde, Einstein, que «o mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que o vêem fazer e deixam acontecer.» Mas, em Portugal, é necessário mais do que coragem para que aqueles que vêem impeçam que aconteça. É necessário ter vocação de bombista-suicida.

É bom não esquecer que quem tem o poder de legislar e punir é precisamente quem tem a chave do palheiro. E sem gravação vídeo ou áudio divulgada na tv, não há nada que consiga abalar o poder da palavra de quem tem a chave do palheiro e que faz sempre fé em juízo, mesmo quando salta à vista desarmada a manifesta falta de juízo. A nossa legislação penal e disciplinar é naturalmente, por um lado, extremamente dissuasora e repressiva para quem queira denunciar este tipo absolutamente execrável de comportamentos e, por outro, extremamente protectora de todos aqueles que têm a chave do palheiro.

Quem denuncia fica completamente isolado e desprotegido, até porque não há uma única testemunha que queira corroborar a denúncia. Ninguém quer depor contra quem tem a chave do palheiro. Por sua vez, quem tem a chave do palheiro consegue arranjar as testemunhas que quiser para jurarem que é mentira o que toda a gente sabe que é verdade.

Veja-se o que se passou com a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk no SEF. Foi, por um triz, que o homem não foi enterrado como tendo morrido de morte natural. No entanto, o médico que denunciou a sua morte, foi despedido. Bastava este médico ter assinado a certidão de óbito de cruz, como era previsível, e de certeza que ia ter menos chatices do que teve e vai ter.

Mas recordemos a descrição do que aconteceu: "O cidadão ucraniano que morreu no SEF do aeroporto esteve 15 horas manietado com fita-cola e algemas. Foi visto assim por enfermeiros, inspectores, chefes. Ficou numa sala, preso, durante horas, com calças pelos joelhos e cheiro a urina. O médico que passou o óbito não viu agressões e deu-a como morte natural. O auto de óbito do SEF também não refere qualquer lesão."

Ora, basta ler esta descrição para se concluir que não estamos perante um assassinato macabro e absolutamente excepcional, que não põe em causa a honorabilidade da instituição e do Estado português, mas perante um assassinato institucional, cometido por aqueles que têm a chave do palheiro.

No entanto, tudo isto só é possível com a conivência dos donos do palheiro, bem entendido, que só se assustam quando o caso chega às televisões. E, perante a reprodução da notícia, não têm outra alternativa a não ser encarnar o papel de Odorico Paraguaçu, pedindo um rigoroso inquérito e que a justiça seja célere e implacável, ao mesmo tempo que apelam à confiança nas nossas instituições. Ou seja, em todos aqueles que têm a chave do palheiro.

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