O Desconcerto do Mundo
Não tenho qualquer dúvida de que as leis são hoje criadas, interpretadas e aplicadas com o único objectivo de beneficiar uns (a clientela amiga) e prejudicar outros (os que não gostam de vir comer à mão). É como se vivêssemos numa cidade onde toda a gente é obrigada a circular de automóvel, mas onde é proibido estacionar em todo o lado.
Quer nos meus tempos de estudante, quer nos meus tempos de professor, nunca dei qualquer relevância a uma esparsa de Luís de Camões que, para além de achar engraçada, considerava que não tinha correspondência na realidade da época.
Acontece que, anos mais tarde, ao lê-la por mero acaso, já como advogado, constatei, com surpresa, que reproduzia fielmente a nossa realidade. Como o poema é o mesmo, só pode ter sucedido uma coisa: a sociedade portuguesa mudou muito e, neste aspecto, não foi para melhor.
O poema denomina-se “Desconcerto do Mundo” e reza assim:
«Os bons vi sempre passar/ no Mundo grandes tormentos;/ e pera mais me espantar,/ os maus vi sempre nadar/ em mar de contentamentos./ Cuidando alcançar assim/ o bem tão mal ordenado,/ fui mau, mas fui castigado:/ assim que, só pera mim,/ anda o Mundo concertado.»
Não tenho qualquer dúvida de que as leis são hoje criadas, interpretadas e aplicadas com o único objectivo de beneficiar uns (a clientela amiga) e prejudicar outros (os que não gostam de vir comer à mão). É como se vivêssemos numa cidade onde toda a gente é obrigada a circular de automóvel, mas onde é proibido estacionar em todo o lado. No entanto, enquanto uns estacionam onde querem e lhes apetece, sem que nada lhes suceda, outros são sistematicamente multados. E se o infractor alegar, em sua defesa, que fez apenas o que viu fazer, o meritíssimo juiz ou a autoridade pública encarregar-se-á de lhe lembrar que não aproveita ao infractor o facto de outros também terem infringido a lei.
Concluindo: em Portugal, o mundo só anda concertado para alguns.
Santana-Maia Leonardo