Opinião | 18-11-2022 08:45

O meu neto Leo

Santana-Maia Leonardo

Portugal é uma varanda com um vaso grande e muitos vasos pequeninos. E, nos vasos pequeninos, as plantas não podem crescer muito ( : ) Mas eu não podia deixar de responder ao apelo interior de voltar à minha terra e à casa dos meus avós, onde guardo as recordações da minha infância e da minha adolescência. Eu pertenço à geração das árvores naturais com raízes profundas que não podem ser transplantadas.

No dia 8 de Fevereiro de 2022, a minha filha partilhou no WhatsApp do grupo da família um post de uma sua amiga do Facebook com duas fotos de um caniche com este texto: “ Olá. Eu sou o Al Capone. Sou caniche e tenho dois anos, chip e vacinas. Sou meigo. Os meus donos já são idosos e já não conseguem dar-me a atenção e os cuidados. Por isso, procuram uma nova família para mim.

A minha mulher respondeu, de imediato, à minha filha, dizendo-lhe que estava proibida de partilhar aqueles posts no WhatsApp do grupo da família. Mas já não foi a tempo.

É certo que eu já tinha tomado a decisão de não ter mais cães até para evitar que algum dos meus cães tenha de passar pela situação do Al Capone, mas a vida faz sempre questão de me fazer morder a língua sempre que faço uma jura.

Quando em Janeiro de 1978, com 19 anos, cheguei à universidade de Coimbra com as minhas ideias revolucionárias, tinha muitas dúvidas e uma só certeza: nunca me casaria e, então, pela Igreja Católica nem pensar. Não é, pois, de estranhar que os meus amigos tivessem ficado com os olhos em bico, quando souberam que, em Setembro desse ano, eu casava na Sé de Viseu pela Igreja Católica.

Também a escolha do curso, da universidade e de como esta história acabou foi uma cambalhota continua. Porque tinha gosto e jeito para a escrita, tendo começado a escrever crónicas e reportagens no jornal da minha terra com doze anos de idade, ainda antes do 25 de Abril, decidi que queria ser jornalista. E, como não havia ainda curso de Jornalismo em Portugal, decidi fazer a licenciatura em Românicas na Faculdade de Letras de Lisboa e, de seguida, ir, à Bélgica, fazer o curso de Jornalismo. Acontece que, em Janeiro de 1978, a Faculdade de Letras de Lisboa entrou em greve pelo que decidi pedir a transferência para Coimbra. E, no final do curso, em vez de seguir viagem para a Bélgica, decidi ser professor e regressar à minha terra.

Quando Andrée Crabbé Rocha, professora catedrática na Faculdade de Letras de Coimbra e mulher de Miguel Torga, soube que eu queria regressar a Ponte de Sor, chamou-me ao seu gabinete para me demover dessa ideia. Andrée Rocha tinha uma grande simpatia por mim, pela minha forma desconcertante de ser estudante universitário e pelo meu gosto poético pela noite e pela escrita. E foi a convite de Andrée Rocha que colaborei com Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen e Pedo Tamen no n.º1 da revista Cadernos de Literatura de que ela foi a fundadora e a directora. E ainda hoje recordo o argumento que Andrée Rocha usou para me tentar convencer de que teria de ir viver e trabalhar para Lisboa obrigatoriamente: “ O António Manuel foi a pessoa que conheci em toda a minha vida com maior facilidade para escrever. Por isso, tem de ir viver e trabalhar para Lisboa, sob pena de o seu talento, se regressar à sua terra, se perder.

Hoje tenho de reconhecer que Andrée Rocha tinha razão. Portugal é uma varanda com um vaso grande e muitos vasos pequeninos. E, nos vasos pequeninos, as plantas não podem crescer muito. Além disso, todos os vasos foram tomados pelas ervas daninhas, o que impede o desenvolvimento de qualquer planta.

Mas eu não podia deixar de responder ao apelo interior de voltar à minha terra e à casa dos meus avós, onde guardo as recordações da minha infância e da minha adolescência. Eu pertenço à geração das árvores naturais com raízes profundas que não podem ser transplantadas.

Ora, como tinha jurado a mim próprio que não iria adoptar mais nenhum cão, a vida voltou a recordar-me que nunca devemos dizer “nunca”. Liguei, então, à amiga da minha filha para lá ir ver o cão no dia seguinte. E como o meu neto António Maria queria ter um cão, achei que este podia ser o cão ideal para ele. No entanto, a minha nora achou que ainda não tinha chegado a altura de cumprir a promessa de dar um cão ao filho. A minha nora pertence àquela geração em que tudo tem de ser programado e planificado com a devida antecedência, ao contrário de mim em que tudo é decidido de um dia para o outro. Ou melhor, em cima da hora, para ser mais rigoroso.

No dia seguinte, fui recebido pelo cão de braços abertos como se já me conhecesse há muito tempo. Pedi para o trazer à experiência até para ver como se relacionava com os outros cães, mas, mal cheguei a casa, liguei ao dono a comunicar-lhe que ficava com o cão.

De seguida, levei-o ao barbeiro para lhe cortar o cabelo e aparar a barba. Quando chegou a casa, cabelo cortado, barba aparada e fato novo até parecia um doutor. Ninguém o conhecia. E tornou-se óbvio que o seu novo aspecto já não condizia com o seu nome. Tornava-se imperioso rebaptizar o cão. E coube ao meu neto Leonardo a escolha do novo nome. E, como o meu neto, é conhecido por Leo, baptizou o cão com este nome, seguindo a velha tradição dos padrinhos. O Leo, que tinha nascido no dia 6 de Janeiro de 2020, foi, assim, rebaptizado no dia 9 de Fevereiro de 2022.

Com os seus dois anos, adora brincar, sobretudo de jogar à bola e de dar ao dente. Só que nem sempre se limita a roer os brinquedos que lhe estão destinados. E, como se isto não bastasse, de vez em quando dá-lhe uns repetentes, tornando-se agressivo. Já mordeu a minha colaboradora, para usar o termo neoliberal adoptado pelos socialistas, duas vezes.

Em casa, o Leo passou a ser a minha sombra. Para onde vou, vai ele. E, se lhe fecho uma porta para evitar que venha atrás de mim, não se cala enquanto não a abro. E ainda tem o descaramento de abrir a minha cama e deitar-se dentro dos lençóis e na minha almofada. Ou seja, tudo coisas que nunca admitiríamos a um filho, mas permitimos aos netos… E o Leo, no fundo, é um verdadeiro neto.

A diferença entre um filho e um neto é precisamente esta: consentimos aos netos aquilo que proibíamos aos filhos. À medida que vamos descendo para a cova, vamo-nos tornando mais tolerantes e permissivos. O fundamental torna-se acessório e o acessório torna-se fundamental.

Hoje a minha ligação aos meus netos não tem nada a ver com a devoção que eu tinha pelos meus avós. Os meus avós ensinaram-me tudo, mas eu não tenho nada para ensinar aos meus netos. Eu nasci no mundo do papel e da esferográfica e os meus netos nasceram na era digital. A única ponte que ainda liga os nossos dois mundos e que eu vou procurando manter são o futebol e o Barça. Mas os netos dos meus netos já não vão saber sequer o que é o futebol.

Ao contrário dos meus netos que são nado-digitais, eu sou um emigrante digital que ganha a vida numa terra estranha, sonhando com o dia em que regressarei à terra sagrada da casa dos meus avós onde plantei a oliveira da Vitória no dia 5 de Outubro de 2018. Sem lápides e sem qualquer referência à minha existência. Eu viverei, enquanto os meus netos se lembrarem dos jogos que fomos ver do Barça. Depois descansarei em paz e eternamente.

O Leo é, no entanto, um neto da minha geração que nunca ouviu falar em smartphones ou computadores. No fundo, é uma extensão da minha infância. Ele é o neto que tem, por mim, a mesma devoção que eu tinha pelo meu avô.

Quando me vou deitar, o Leo salta para cima da cama e vem deitar-se junto a mim. E, enquanto o afago, recordo com a saudade a minha infância na voz de Alfredo Marceneiro: “É tão bom ser pequenino, ter pai, ter mãe, ter avós (…) A gente a fazer maldades, e ter quem goste de nós.

Santana-Maia Leonardo

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