A vila de Coruche é de quem lá vive
Esta crónica nasceu de uma conversa à porta de casa com uma vizinha que me anunciou que tinha comprado casa em Coruche para viver mas também para criar um espaço de artes. O que me admira é que não haja mais gente a sair da capital para gozar este prazer de viver no meio do campo ou da charneca.
Tenho um amor especial pela vila de Coruche; e não é só por ser uma terra banhada pelo rio Sorraia que lhe dá um encanto que não encontramos em mais nenhuma vila da região. O amor é antigo mas nunca foi correspondido como devia; e a culpa é minha que me desdobro em mil amores para não me dedicar com especial atenção àqueles que eventualmente merecem mais. Não exagero se escrever que a vila de Coruche é um poema escrito com casas sobre a planície; o concelho é um dos mais extensos do país e tem características que fazem dele um dos mais ricos. Limitado a norte pelos municípios de Almeirim e Chamusca, a nordeste por Ponte-de-Sor, a leste por Mora, a sudeste por Arraiolos, a sul por Montemor-o-Novo e Montijo, a oeste por Benavente e a noroeste por Salvaterra de Magos; até parece que o território dá a volta a Portugal para se constituir de várias culturas que ultrapassam a beleza da paisagem alentejana e a riqueza da lezíria ribatejana que podemos encontrar conforme os nossos interesses ou a nossa sede de conhecimento ou de evasão. Ficaria pela última hipótese se tivesse que escolher uma boa razão para viver de forma permanente em Coruche: o desejo de evasão. Coruche faz lembrar a frase de Millôr Fernandes: "o pôr-do-sol é de quem o vê"; Coruche é de quem lá vive e eu sou uma dessas pessoas, embora seja um habitante quase sempre ausente e em dívida para com a hospitalidade das suas gentes e das suas belezas naturais.
Há três dezenas de anos viajava para Lisboa e saía de lá de regresso à terrinha sempre com a sensação que os dias eram curtos, as horas passavam como minutos, os dias a correr, de tal modo que mais de metade dos assuntos ficavam adiados para a próxima visita.
Hoje vivo a situação inversa; vou à terrinha passar o dia e parece que o nascer do sol se encontra com o crepúsculo. Entre a casa de família e a maracha do Tejo, depois do almoço no restaurante, das limpezas e das varreduras, das duas ou três visitas ao correio electrónico para não perder o fio à meada, entre o tempo que procuro um livro na biblioteca que desapareceu da vista, e outro que reapareceu e me cativa para alguns momentos de releitura, passa o dia, e lá vou eu depois a correr para o caminho de regresso a casa de forma a chegar a horas à piscina onde, diariamente, dou umas braçadas para me manter em forma e não achar que me levantei da cama para trabalhar e que vou voltar para a cama para descansar do trabalho.
Desta experiência gostava de partilhar com os leitores que não há vidas perfeitas, principalmente quando vivemos a correr atrás das emoções, mas é possível ir aperfeiçoando a forma como vivemos a vida. Eu explico: depois de uma certa idade esqueçam os compromissos inadiáveis e os objectivos a concretizar; o caldo da vida engrossa de tal forma que ou comemos a sopa devagar ou passamos a vida engasgados.
Esta crónica nasceu de uma conversa à porta de casa com uma vizinha que me anunciou que tinha comprado casa em Coruche para viver mas também para criar um espaço de artes. O que me admira é que não haja mais gente a sair da capital para gozar este prazer de viver no meio do campo ou da charneca. E não esqueço colegas e amigos de escola que em tempos passados migraram com as famílias para Lisboa e nunca mais voltaram à terrinha como se tivessem emigrado para o fim do mundo. E quantos de nós nos tempos de hoje trabalhamos em Lisboa e viajamos todos os dias para Santarém, Entroncamento ou Tomar, ou vice-versa, e nos consideramos uns sortudos por conseguirmos ter o melhor de dois mundos. JAE.