Sou grato a quem me pariu
De vez em quando sentimos que a nossa profissão nos consome a vida mas deixa um doce agradável na boca. É o caso esta semana em que não estou a trabalhar à secretária mas nem por isso deixo de trabalhar e pensar no trabalho.
Subir aos céus num A320neon da TAP, à meia-noite, a meio da semana, depois de um dia normal de trabalho, e não sentir a ansiedade da partida, é tudo o que procuro desde que me conheço. Agora já posso dizer que sou capaz de viver numa cabana quando começarem a construir resorts nas nuvens. Não sei quando regresso desta viagem e inspiro-me num livro de Olivier Rolin (O meu chapéu cinzento) para falar com Deus que ficou em terra a desejar-me boa viagem, já que viajo para escrever, “o que implica um desacordo com o mundo”.
A profissão de jornalista permite que falemos do nosso trabalho sem que nos julguem em bicos dos pés. Dificilmente encontraremos nos jornais ou nos livros testemunhos de mestres da carpintaria, correeiros, sapateiros, ferradores, pedreiros, ladrilhadores, entre tantos outros profissionais e profissões. Jornalista tem a faca e o queijo na mão, como se costuma dizer, daí a tentação de se julgar com direito a falar de si enquanto escreve sobre o seu trabalho.
Precisei desta introdução para contar que recentemente vi-me a fechar uma edição de O MIRANTE como nos velhos tempos chegando a casa exausto, sem sono, nervoso, incapaz como noutros tempos de dormir, o que me obriga a passar mais de metade da noite a ler, que é quase como continuar a trabalhar, embora em modo de formação para a batalha seguinte. O mais estranho é que o incidente acontece numa altura em que estou de saída da proa do barco e comecei a desenhar a tal casa nas nuvens para onde quero viajar mais vezes até um dia ficar lá a morar para sempre.
Sou um jornalista sem grandes méritos que não o de gerir uma boa equipa. Para mim chega, se juntar a esse sentimento de orgulho e gratidão as memórias que guardo de jornalistas como Fernando Piteira Santos, Luís de Miranda Rocha, Baptista-Bastos, António Paulouro, Orlando Raimundo, entre poucos mais, que me passaram no início da profissão, testemunhos inolvidáveis desta vida de servir as pessoas e as instituições sem pedir nada em troca que não seja a liberdade para trabalhar.
Não vou falar de nomes, mas hoje sou tão reconhecido a um conjunto de profissionais que me acompanham nesta jornada, em todas as áreas da empresa editora, como aos antigos amigos e conhecidos a quem roubei, sem eles darem por isso, a alma desta profissão.
A vaidade e a inveja não me assaltam o espírito. Sou grato a quem me pariu por me ter dado algumas qualidades que, entretanto, soube valorizar. O trabalho permitiu-me ainda não valorizar o dinheiro mais do que ele merece. Adoro comer latas de sardinha e de atum em tomate, café e pão com azeitonas, e confesso que não conheço, nem quero conhecer, os restaurantes mais famosos do país e do mundo.
Nunca me deixei corromper nem corrompi. Algumas vezes paguei caro algumas liberdades e ingenuidades. Se hoje sou mais ou menos inabalável também o devo a esses momentos em que ainda não tinha aprendido a cair.
Tal como um bom médico vai para casa todos os dias com a alma cheia por suar as estopinhas para atender todos os doentes, um jornalista que se preze não vai dormir ao fim do dia sem escrever o suficiente para fazer justiça à profissão que abraçou e muito menos vai sonhar para a cama enquanto a dura realidade não lhe passa das mãos para o teclado do computador. JAE.