“Nobel da Gastronomia” era do Ribatejo – In Memorium de Armando Fernandes
O Nobel da Gastronomia era do Ribatejo tendo sido concedido, em 2014, ao livro À Mesa em Mação – carta gastronómica de Armando Fernandes, recentemente falecido. Não só o autor, sobejamente conhecido dos meandros da boa mesa, e da boa conversa, pese embora natural de Bragança há muito se radicara no Ribatejo, estando à região umbilicalmente ligado, também o livro versa temática ribatejana.
O famoso historiador, Nial Fergusson, biógrafo de Henry Kissinger, notado por posições liberais, na história e fora dela, defendeu, em 2014, um prémio Nobel para a Biografia. Podemos pensar que já existe, mas não há. De facto, o Prémio Nobel da Literatura premeia sobretudo poetas, romancistas e dramaturgos. O único historiador, reconhecido como tal, dessa restrita lista foi Winston Churchill. Também não consta do Nobel da Literatura premiar jornalistas, daí a sua equiparação ao Pulizter (embora este também outorgue galardões à Ficção). Fergusson, fazendo-se ou não ao prémio, postula em ensaido de 2014, um verdadeiro Nobel para a Biografia, criado pelos nórdicos, tal como foi criado depois do legatário morrer o da Economia (que para Fergusson e outros pode ser uma ciência que tanto deriva da Filosofia como da própria História). Candidato português já temos, chama-se António Cândido Franco, sem desprimor para qualquer outro, está muitos furos acima da média, acima de Fergusson, como biógrafo.
Vem isto a propósito da gastronomia, a qual de per si, entendida como arte de cozinhar ou de inventar refeições não têm prémio Nobel, terá outros equiparados. Também não o tem a literatura gastronómica pura e simples. Neste caso, como aliás por exemplo no da literatura infantil (Prémio Hans Christhian Andersen, esse nórdico), um outro prémio se tem equiparado ao Nobel, trata-se do francês Prix de la Académie International de la Gastronomie (Academia Internacional de Gastronomia). Ora, com propriedade, podemos dizer que o Nobel da Gastronomia era do Ribatejo tendo sido concedido, em 2014, ao livro À Mesa em Mação – carta gastronómica de Armando Fernandes, recentemente falecido. Não só o autor, sobejamente conhecido dos meandros da boa mesa, e da boa conversa, pese embora natural de Bragança há muito se radicara no Ribatejo, estando à região umbilicalmente ligado, também o livro versa temática ribatejana.
Dirão os bairristas, que mestre Armando era transmontano, que se pode tirar “o homem de Trás-os-Montes, mas se não pode tirar Trás-os-Montes do homem”, seguramente porque as raizes nunca as negou. Aliás, recordo a última prosa que tívemos e muito me sensibilizou de um convite para com ele participar num projeto em Bragança, para o qual a edilidade daí não conseguiu obter os meios necessários. Melhor que ninguém Armando Fernandes sabia defender a investigação histórica e em particular a gastronómica de certas tentações, infelizmente muito portuguesas, de quererem que os investigadores trabalhem de graça. É certo que em muitas coisas não concordávamos, sobretudo no valor literário de Saramago (o José, não o Alfredo), ou de Bertrand Russel, mas bibliotecário de formação e de profissão foi um homem que se fez historiador da gastronomia e gastrónomo, palmilhando uma área pouco simpática para quem erra. Recordo, ter-lhe jurado que não haveria “francesinhas” nas receitas tradicionais dos restaurantes convidados para o livro dos 40 anos do Festival Nacional de Gastronomia porque efetivamente não são (serão já?) cozinha tradicional portuguesa, de que julgo assinou o último prefácio. Confidenciou-me, para sua desfeita, que alguém tinha colocado um camarão na capa de outro livro em que só fora responsável pelo prefácio, marisco desfasado do tema. “Quem não tem competência não estabelece”, disse-me ser o seu lema quando falávamos sobre Sidónio Muralha, a quem encontrou um pouco desalentado com rumo demasiado liberal do pós-revolução (1980) e algum alheamento familiar. Para Fernandes o uísque que tramou o poeta não era já hábito gastronómico, nem tentação romântica, era remédio fatal das agruras da existência.
Dirão os bairristas que Mação fica na Beira (assim o foi em 1936), mas se ainda há bem pouco tempo, por maioria de razão, quiseram ingressar no Médio Tejo, alguns motivos terão. Território de charneira, entre várias influências, as verdadeiras “Terras de Portugal”, nas palavras de meu sogro José Bragança, a relação gastronómica e histórica desse território com o Ribatejo, é bem visível em À Mesa em Mação que bem vale a leitura, para além do prémio. Certamente seria modelo da carta gastronómica para Santarém que o mesmo autor preparava.
Num texto que já vai longo, diga-se em jeito de conclusão, que Armando Fernandes foi o terceiro português a receber tal galardão depois do prémio Carreira de Maria de Lurdes Modesto (2005), pelo conjunto da obra e de Fátima Moura, pelo livro Cataplana-Experience (2009). Na edição de 2022 Vírgílio Gomes venceu com a obra À Portuguesa Receitas em livros estrangeiros até 1900. Todos à sua maneira passaram já pelo Festival Nacional de Gastronomia, no qual, porém, a presença e consultoria de Armando Fernandes foi a mais regular e perane.
Fica o desafio que a pandemia não permitiu concretizar de um Festival de Literatura Gastronómica, paralelo ao certame, bem como, tanto quanto sei, não sucedeu em vida da apresentação de A Mesa em Mação, numa mesa de Santarém.