Opinião | 25-04-2023 11:32

Abril vidas Mil: Sidónio Muralha e o dia mais feliz

Abril vidas Mil: Sidónio Muralha e o dia mais feliz
Opinião: José Raimundo Noras
Capa de Dorindo de Carvalho para Sidónio Muralha, Poemas de Abril, Lisboa: Prelo, 1974. Col. Raimundo Noras.

Estamos em Abril, e este texto vai sair no dia do 49.º aniversário do “dia mais feliz da vida de Sidónio Muralha”: 25 de abril de 1974. Quem ler este texto também pode marcar presença em Vila Franca de Xira, no Museu do Neo-realismo para ver a exposição Sidónio Muralha Caminhada Insubmissa, patente até 22 de outubro.

Bom dia. Ninguém me vai levar a mal que o dia mais feliz da minha vida recente foi o passado dia 15 de abril, onde com a co-curadoria da professora Violante Magalhães, de extrema generosidade, revisão técnica e científica do Museu do Neo-realismo, dirigido por David Santos e apoio inexcedível de Odete Belo, pessoas nas quais saúdo toda a equipa, enviado abraços também para a vereadora Manuela Ralha, a quem tive privilégio de conhecer nessa tarde.

Foi um percurso que se fez caminhando. Conheci o Sidónio aos 18 anos, através de Chico Noras, hoje realizador famoso, nessa época irmão mais novo, sempre o meu “maior irmão”. Procurei ensinar como se fazia pesquisa em livros citando, não copiando ou se o engenho só desse para pequenas alterações no texto colocar “adaptado de” — sobretudo porque copiar é feio, de plágio disse Brecht que é o faz a humanidade avançar, não sabemos. Voltando a Sidónio, o texto que eu mais preocupado com paixões secretas por colegas de turma, do que com literatura, adaptei para meu irmão era assinado por Fernanda Frazão, quis o fado da vida que se viessem a tratar da minha primeira editora, na Apenas Livros, dez anos depois.

Ignorante de todas estas matérias, desconhecedor dos meandros do Tarot, e da adivinhação, fiquei com a sensação que Sidónio poeta sobretudo escrevera para crianças e disso fizera vida. Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades. Fugi de Lisboa, como Simeão fugiu da cruz, abandonei direito, por tal como o ilustre mestre Mário Rui Silvestre o achei torto, ou pelo menos tortuoso — nunca esqueci a FDL, minha primeira namorada. Rumei a Coimbra, onde a vocação falou mais alto. Já quedado pela FLUC, as moiras trocam-me as voltas. Fugia de Lisboa, fugia da política, fugia de faculdades e associações controladas por partidos, mas o amigo João Belo depois de uma seca de três horas lá nos engatou para essas lides: a mim ao Carrilho (vulgo Sansão) e ao, atual e ilustre deputado Ricardo Lino (vulgo Mirandela). Ao mesmo tempo, a voz antiga dos mazorros que nunca se calam perante injustiças ou sobre o que acham errado levou-me a criticar opções incoerentes de outro governo apaixonado pela educação, mas investindo ao desbarato em submarinos e estádios de futebol — não me entendam mal é tudo necessário, existem prioridades e nem tudo precisa de ser topo de gama, não vejo necessidade nenhuma de submarinos com capacidade nuclear. Numa Assembleia Magna da AAC, conheci Tiago Soares, ativista envolvido com a ONU e com forum norte sul e meu deu a conhecer o Novo Cancioneiro, estávamos em 2002.

A partir daí, a paixão pela “poesia heróica muralhiana” virou a “caça ao livro”. Virou sedução a procura de quem busca o amante e não o encontra, com a ajuda essencial de meu pai (Miguel Noras), depois quase 20 anos, consegui reunir todos os livros de um dos melhores poetas portugueses, de quem José-Agusto França, em conversa privada nos confidenciou considerar apenas comparável aos expoentes máximos da literatura de vanguarda do século XX português. Fica dada a resposta a Alexandre O’Neil, que queria cancelar o poeta, (Santos, 2014: 303).

A cruzada foi-se fazendo sozinha por insensatez, visto que também fui colecionando alguns textos dos professores reputados, sobretudo depois da minha primeira ida ao Museu do Neo-realismo em 2014, a propósito de uma pequena exposição bibliográfica na Casa do Brasil. Inaugurada em outubro, não teria existido sem os bons préstimos de todos os envolvidos, mas em particular da Conceição Branco, do Carlos Amado — a quem conheci no dia certo porque chegou no momento exato em que o elevador se estragou e sem sua ajuda nunca era possível nem carregar movéis, nem entender logo tudo que estávamos a fazer mal em termos de design, —, naturalmente também a Susana Pita Soares, a quem vendi a ideia armado apenas de um livro e do poema Pato Marreco (Muralha: 2010: 16).

Dois ou três anos depois, com a audácia dos tímidos (ainda que não o aparentem) escrevi ao professor Miguel Falcão sobre o elusivo teatro de Sidónio, todo ele inédito. Respondeu-me depois de algum tempo, recordando-se sim de ler tais textos no acervo de Luiz Francisco Rebello. Batia certo: numa noite um jovem ribatejano me agrediu à cabeçada, por dá cá a aquela palha, meu pai comprava para me oferecer duas obras sidonianas dedicadas ao insigne dramaturgo e historiador teatral. A partir daí foi rápido encontrar dois textos. Deve e haver (1935) totalmente desconhecido, escrito aos 15 num contexto escolar, submetido à censura para poder ser representado. Salva de Prata (1950) referenciado nos trabalhos de Miguel Falcão, editado depois na Nova Sintese (2018). Miguel apresentou-me a Violante e a António Mota Redol, companheiros inseparáveis dessas andanças sidonianas, estímulo incessante para que não desistisse de me dedicasse com rigor a esta causa: estudar e divulgar a obra muralhiana. Mais tarde, em casa de José Ferreira conhecia Maria José Vitorino, com um bonito projeto de exposição itinerante para escolas, apresentado em Pombal e que estamos a ver se vem a Santarém.

Daí surgiram todas estas possibilidades. Toda esta caminhada é feita a várias mãos, mas essencialmente com a amizade incrível de Violante F. Magalhães, a quem conheci pessoalmente num dia chuvoso “caçando” no Grupo Dramático e Escolar os Combatentes, perto de sua casa, vestígios da presença do escritor numa “Lisboa cinzenta” dos anos 40. Conversámos imenso, abriu-nos as portas de casa a todos os sonhos e projetos, não posso deixar de aqui lhe expressar um testemunho de uma gratidão sem fronteiras e só possível de concretizar em poesia.

Do outro lado do “rio Altântico”, chegou primeiro Maria Ângela Raio, cuja ancestralidade portuguesa a fez fixar-se em Alcobaça e depois na Nazaré, legando aos mais novos trabalhos na Fundação Sidónio Muralha (FSM, Curitiba). Nesse fórum, dirigido pela viúva Helen Anne Butler Muralha, alimenta-se a promessa de conseguir trazer as cinzas do poeta para Portugal.

Há dias Joaquim A. Emídio cruzou-se, em Coimbra, com duas amigas da FSM, Priscila Angélica e Jaqueline Conte, investigadora na FLUC — alma mater, eterna amante. A JAE também devo diligências para encontrar mais “coisas” sidonianas no espólio de Fernando Lemos, das quais aguardamos que o fruto caia de maduro (Muralha, 2022: 55)

Não poderia deixar de referir a professora Roseli Boschillia, que deve estar a chegar a qualquer momento a estas paragens do outro lado do mar, com ela se organizou um colóquio internacional, graças ao apoio de M.ª Beatriz Rocha-Trindade (Sociedade de Geografia de Lisboa), resultando num volume dos cadernos Nova Síntese, sabiamente coordenado por Violante Magalhães (2022). Trata-se do segundo livro dedicado a Sidónio depois do conjunto de trabalhos de João Manuel Ribeiro (2013), reunidos sobre o título A palavra de criança não está poluída. Ribeiro, escritor e editor, deu à estampa com a chancela Busílis, a mais recente antologia de toda a obra poética de Sidónio Muralha (2022)

Estamos em Abril, e este texto vai sair no dia do 49.º aniversário do “dia mais feliz da vida de Sidónio Muralha”: 25 de abril de 1974. O que me leva a outro dia mais feliz, um 25 de abril no século XXI, que terei de pesquisar melhor qual. Discretamente e de soslaio, o simpático Moita Flores, então presidente da câmara, quer cancelar ou encurtar a cerimónia, chove muito. Chove demais para os seus chapéus cinzentos e catraias loiras. Chove de menos para os estudantes (da ESES e julgo que outras) que tinham ensaiado vários meses. Por que será que certos políticos que também trabalham muito, insistem em menosprezar o trabalho alheio? Por ignorância presumo. Tinha dois poemas para ler. Moita, a quem também leio, pediu-me que lesse apenas um. Fiquei pelo testemunho do “Poema de Abril” (Muralha, 2022: 274-275):

«A farda do homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado
do povo banido
que trouxe das trevas
um pedaço de sol.


Foi este o prodígio
de um dia de abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.


Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.»

Sempre houveram vozes, prometendo libertar e insistir em calar as outras. O poema que ficou por dizer é de outra vida em abril. Fica para a próxima.

Voltemos ao dia mais feliz. O meu, mais recente, claro, foi a 15 de abril. Há tantas surpresas naquela exposição que só visto. Por isso marquem encontro em Vila Franca de Xira, no Museu do Neo-realismo com a exposição Sidónio Muralha Caminhada Insubmissa, patente até 22 de outubro (https://www.museudoneorealismo.pt/exposicoes/evento-564/sidonio-muralha-caminhada-insubmissa

Referências:

Falcão, Miguel (coord.) (2018) - Nova Síntese - Textos e Contextos do Neo-Realismo: Neo-realismo no teatro. Lisboa / Vila Franca de Xira: Edições Colibri / Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, n.º 13.

Pavão dos Santos, Vítor (2014) O Fado da Tua Voz - Amália e os Poeta. Lisboa: Bertrand Editora. nov. 2014.

Magalhães, Violante (coord.), (2022), 100 Anos de Literatura Gente – Homenagem a Sidónio Muralha (Comunicações do Colóquio Internacional (Novembro 2021). Lisboa: Edições Colibri / Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, col. “Cadernos Nova Síntese” [6].

Muralha, P. Sidónio de A.; Feliciano, Armando José (1935) Deve e haver, dactiloscrito com 36 páginas, Lisboa, 8 de Fevereiro de 1936. [ANTT, SNI/DGE, pr. 1375, PT/TT/SNI-DGE/1/1375] [Inédito].

Muralha, Sidónio, (2010), Bichos, bichinhos e bicharocos. Edição fac-símile da 1.ª edição. Ilustrações de Júlio Pomar e música de Francine Benoit, prefácio de João Lobo Antunes. Lisboa: Althum.com / Centauro. [Incluiu CD].

Muralha, Sidónio, (2022), Poesia Reunida. Introdução de Roseli Boschilia e José Raimundo Noras; curadoria e nota de abertura de Helen Anne Butler Muralha, Jaqueline Conte, Priscila Angélica Santos, fotografias de João Urban, edição autorizada e supervisionada pela Fundação Sidónio Muralha. S. l. [Porto]: Busílis & Trinta-Por-Uma-Linha.

Ribeiro, João Manuel,(2013), Palavra de Criança Não está Poluída: a obra infantil e juvenil de Sidónio Muralha, prefácio de Blanca-Ana Roig Rechou, Porto: Tropelias e Companhia, col. “da Literatura Infanto-Juvenil” 9.

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