O Gordo, o Palito e o Cabeçudo
A minha geração cometeu um erro civilizacional que se está a revelar trágico. Pariu, educou e criou uma geração de “coninhas” que, neste momento, governa o mundo, legisla e nos controla o dia a dia, farejando e vasculhando os nossos pensamentos mais íntimos, os nossos gestos e todas as palavras que dizemos ou escrevemos com intuitos persecutórios.
Quando era pequeno era muito maior do que todos os meus companheiros de escola. Além disso, era muito magrinho e tinha uma cabeça muito grande. Ou seja, tinha um vasto leque de atributos que permitia uma grande variedade de alcunhas. Em casa, o meu avô e o meu pai chamavam-me “lingrinhas” ou “trinca-espinhas”. Para a minha avó, era um “pau-de-virar-tripas”. E, na escola primária em Setúbal, os meus companheiros chamavam-me “girafa”, “escadote”, “cabeçudo” ou “palito”.
Quando vim para a escola primária em Ponte de Sor, deixaram de me chamar “cabeçudo”, porque a alcunha já tinha dono, uma vez que havia um aluno que tinha uma cabeça maior do que a minha. E no Colégio La Salle, os meus melhores amigos eram o Gordo Courinha, o Caixa-de-Óculos e o Cabeçana.
É evidente que nem eu, nem os meus amigos, gostávamos das alcunhas que nos iam colocando, se bem que adorássemos colocar alcunhas aos outros. E, se algum se chateasse com a alcunha que lhe pusessem, já não se livrava dela.
Uma das razões de eu ter sido alvo de uma grande variedade de alcunhas foi precisamente nunca ter demonstrado que elas me chateassem, mesmo quando chateavam.
E a verdade é que este mundo cruel das alcunhas da minha infância tornou-me mais rijo, ajudou-me a aceitar e a superar as minhas imperfeições físicas e moldou-me o carácter. “ A vida só é dura para quem é mole ”.
No entanto, pior do que as alcunhas por razões físicas, eram as alcunhas por razões de carácter: “coninhas”, “graxista”, “lambe-botas”, “queixinhas”…
Acontece que a minha geração cometeu um erro civilizacional que se está a revelar trágico. Pariu, educou e criou uma geração de “coninhas” que, neste momento, governa o mundo, legisla e nos controla o dia a dia, farejando e vasculhando os nossos pensamentos mais íntimos, os nossos gestos e todas as palavras que dizemos ou escrevemos com intuitos persecutórios. Um simples olhar ou uma pequena palavra, que não se enquadre no espartilho dogmático da sua bíblia pseudo-científica, é o suficiente para sermos exibidos em público como hereges e lançados na fogueira. Para quem não saiba o que é um “coninhas”, eu explico. Um “coninhas” é um cagalhão com dois olhos. É tão repugnante que nós nem o podemos pisar, porque ficamos todos sujos e a cheirar mal.
E esta geração de “coninhas”, na sua imensa ignorância com pretensões de cientificidade, comporta-se como os pais de “A Bela Adormecida” que, para evitar que a sua filha se picasse aos dezasseis anos, mandaram queimar todos os espinhos do reino. Se tivesse lido a história, teria aprendido que a estratégia dos pais de “A Bela Adormecida” de colocar a sua filha numa redoma de vidro totalmente asséptica foi errada. Quem cresce num mundo sem espinhos acaba sempre por se picar. É dos livros. Dos livros do meu tempo.
Santana-Maia Leonardo