Opinião | 04-05-2023 07:00

Ir para a cama com a República e dormir como um monarca

Tinha 18 anos no dia 25 de Abril de 1974 e era muito mais politizado que a grande maioria dos jovens de hoje, mas paguei caro esses anos duros; e o meu 25 de Abril só aconteceu quatro anos depois da revolução.

Devo os meus 15 minutos de fama na televisão ao jornalista e escritor Armando Baptista-Bastos, autor de “O Secreto Adeus” e de muitos outros romances e livros de crónicas e entrevistas que li na altura certa, de forma rendida, e ainda hoje leio e releio. Apesar da entrevista ter sido extensa o jornalista que na altura tinha um programa na SIC não me fez a célebre pergunta: “onde é que estavas no 25 de Abril”, talvez porque nessa altura ainda não a tinha incluído na sua agenda.
Baptista-Bastos não perguntou, mas quero responder a mim próprio, embora fora de data, já que nesta coluna mando eu e quem, às vezes, me corrige as gralhas e a pontuação e até muda o sentido de algumas frases.
No dia 25 de Abril de 1974 estava a trabalhar atrás de um balcão desde os 11 anos e o meu pai era quem mais facturava na vila da Chamusca a vender vinho, cervejas, pregos e peixe frito. Nesse dia, a meio da tarde, junto ao mercado municipal, ouvi o presidente da câmara, António J. Lopes da Costa, saudar algumas pessoas e dizer-lhes com toda a serenidade e convicção que o que se estava a passar não era para levar a sério; que devíamos continuar a nossa vida sem sobressaltos. Nesse dia o filho mais velho de uma família pobre mas bem conhecida na terra, estava por perto a ouvir a conversa e a rir-se como eu, já que todos sabíamos que tinha chegado a hora. Ele tinha uma história bem diferente da minha, mas não deixa de ser até mais interessante; como era de uma família que na altura tinha que estender a mão à caridade, o presidente da câmara obrigava-o a cortar o cabelo quando já lhe caía pelas costas. Não sei contar toda a história porque ele era mais velho que eu, de poucas conversas, e o tempo vai apagando as memórias e a noção de alguns interesses da juventude.
Tinha 18 anos nessa altura e era mais politizado que muitos jovens de hoje. Já contei isso noutras crónicas. A cervejaria do meu pai era um dos locais de encontro do José Júlio, Carlos “Cochicho”, Gonçalo Cabaço, do senhor Moreira, entre outros, a maioria tipográficos de “A Persistente”, que era o grande ninho de víboras da Chamusca no que toca a opositores do antigo regime. O meu 25 de Abril só aconteceu quatro anos depois quando me libertei do balcão e consegui fugir de casa, embora com uma mão à frente e outra atrás.
Neste último dia 25 de Abril ouvi Lula da Silva na televisão e depois desliguei o aparelho. Editei um texto de um colaborador do jornal e durante toda a tarde estive a trabalhar num texto que saiu na edição online e por lá vai morrer como tudo na vida. A seguir ao almoço reli um livro de John Milton, “Aeropagística - Discurso Sobre a Liberdade de Expressão”, que foi escrito em meados do ano de 1600 e que amanhã mesmo vou oferecer a um jovem que trabalha comigo. Curiosamente o livro tem uma dedicatória de Jónatas Machado, o ilustre prefaciador, que é professor universitário e um dos mais respeitados constitucionalistas do nosso tempo. Não me lembro de lhe ter agradecido o envio do livro e estou a tentar perceber se fiz má figura e se ainda vou a tempo de me redimir. O livro tem cem páginas, mas uma dimensão que não passa pela cabeça da maioria dos políticos da nossa praça. E foi escrito em 1644 como desafio à censura parlamentar inglesa. Devia ser de leitura obrigatória para todos os políticos que se candidatam a cargos públicos.
O dia foi tão grande que ainda consegui ir dar um mergulho na piscina e gozar meia hora de sauna e banho turco. Ao cair da noite fui ao cinema e no regresso a casa comi uma sandes mista e um sumo de laranja num lugar especial. Dantes era um prego e uma cerveja, mas agora estou a mudar de hábitos para não dar por mim a ver sempre as mesmas caras e a fazer os mesmos caminhos fora de horas. Em casa, já depois da meia-noite, fui logo para a cama com a velha República, mas já nada é como dantes; assim que a cabeça caiu na almofada dormi que nem um monarca falido de barriga cheia e vida descansada. JAE.

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