Opinião | 14-06-2023 07:00

Os galos que cantam a todas as horas porque nas cidades está sempre a amanhecer e o carteirista a precisar de fazer greve

Emails do outro mundo

Citadino Serafim das Neves

Citadino Serafim das Neves
Não vivo no mundo rural, como dizem alguns, mas o mundo rural veio até mim. Desceu à cidade, chegou à minha rua e entra-me pelo apartamento adentro, mesmo no quarto andar. Estou no campo, é o que é. Só me falta o ar puro.
Já não falo da gravação do relógio da torre da igreja, que badala todas as horas e meias horas com umas notas do Avé-Maria de Fátima pelo meio. Falo do cheiro a terra e estrume que vem de uns lotes para construção, entalados entre prédios, que estão a ser usados como hortas. E falo dos animais, cujas manifestações sonoras de regozijo são estimuladas pelas maravilhosas lâmpadas LED da iluminação pública.
Há um galo, que uma vizinha tem numa capoeira instalada numa das tais hortas urbanas e o pobre bicho, que antes só cantava quando começava a clarear, agora canta dia e noite porque há sempre luz, seja natural ou artificial. É uma felicidade ouvi-lo, de tão alegre que canta.
Com os cães é o ruído que lhes dá ganas de libertarem os seus dotes. Geneticamente preparados para dar sinal de aproximação de estranhos, aos rebanhos ou às quintas, ladram agora incessantemente a cada passagem de um carro ou de pessoas a caminho do supermercado.
Só é pena que os donos que os trancaram nas varandas não os oiçam por terem janelas com vidros duplos. Caso contrário já estavam todos a latir num qualquer Animal Voice Portugal.
Fiquei sensibilizado com o comunicado da polícia a anunciar a detenção do “carteirista mais antigo do país” (uso a expressão exacta). Um profissional de 86 anos que tem a felicidade de não ter sido obrigado a reformar-se aos 70 anos, como acontece a muitas vítimas daquilo a que agora chamam “idadismo”.
Pelo menos no carteirismo, para usar um belo neologismo, valoriza-se o conhecimento, a sabedoria e a experiência dos mais velhos. E provavelmente, nas horas vagas, ainda é convidado para aquelas actividades modernas a que autarquias e comissões de festas chamam “workshoping” seja lá o que isso for.
Segundo a polícia, “o carteirista mais antigo do país” obteve, no exercício da actividade, mais de cinco mil euros, entre os meses de Setembro de 2022 e Março de 2023. Devem ter chegado àquele valor através da declaração de IRS, presumo eu.
Seja como for, fazendo contas, ficamos a saber que tem um rendimento abaixo do ordenado mínimo nacional e sem 13º mês nem subsídio de férias, estando, provavelmente, a precisar de fazer uma greve. Por estas e por outras é que muitos jovens, em vez de irem para carteiristas vão para assessores ou funcionários públicos.
Ricardo Arroja, o tal economista que chamou esganiçadas às deputadas do Bloco de Esquerda, escreveu há dias isto, a propósito de funcionários públicos, greves e ordenados.
“Se um extraterrestre tivesse aterrado em Portugal nos últimos meses e visto as inúmeras greves da função pública com que o país se tem defrontado, teria concluído que trabalhar para o Estado português é uma miséria. Mas, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), trabalhar para o sector público em Portugal não é nada mau; na verdade, é até bastante bom porquanto, em média, os salários praticados na administração pública são superiores em 51,2% aos do sector privado”.
Um abraço bem abonado
Manuel Serra d’Aire

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