Machado de Assis e a filosofia das folhas velhas
O espírito com que volto à estrada, e vou fazer campismo, é bem diferente da sensação de me reler nas cartas de juventude. De verdade, o meu tempo de juventude foi modesto em quase tudo, incluindo as cartas e as viagens, menos no espírito e nas emoções. Por isso vingo-me agora desses tempos em que “o mundo era grande para Alexandre, mas um desvão de telhado era o infinito para as andorinhas”.
Um dos meus autores preferidos é Joaquim Maria Machado de Assis, que aqui vai com o nome todo para salientar o facto de sermos homónimos. Foi por sua causa que o meu nome um dia foi salvo da chacota entre intelectuais brasileiros que brincavam com aquela piada de que os portugueses ou se chamam Joaquim ou Manuel. Uma jovem americana, namorada na altura de um deles, saiu em minha defesa e perguntou: “quem é que sabe que o maior escritor de língua portuguesa de sempre se chamava Joaquim?”. E a verdade é que as nove sumidades ficaram caladas que nem uma parede. E lá veio o nome próprio do autor das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e de tantos outros livros que fazem dele, ainda hoje, um dos meus autores preferidos que releio com prazer. Antes de oferecer a edição que tenho em mãos, fui descobrir as frases assinaladas e não resisti a guardar o livro em casa mais uns dias. Na hora da despedida, a propósito de uma viagem de mochila às costas que vou fazer daqui a dois dias, recordo uma parte do livro em que o autor aconselha o leitor a guardar as cartas da juventude, para que um dia, “recompondo o pretérito, possa reconhecer a filosofia das folhas velhas, o prazer de nos vermos ao longe, na penumbra, com um chapéu de três bicos e umas botas de sete léguas”. Estou na idade de reler as cartas de juventude assim como de voltar à estrada como quando tinha 17 anos. São dois desafios diferentes que enfrento com a mesma tenacidade. Quando esta crónica for publicada o livro já não é meu. Ficará na lembrança como as cartas da juventude e os momentos vividos a viajar abrindo caminhos.
O espírito com que volto à estrada, e vou fazer campismo, é bem diferente da sensação de me reler nas cartas de juventude. De verdade, o meu tempo de juventude foi modesto em quase tudo, incluindo as cartas e as viagens, menos no espírito e nas emoções. Por isso vingo-me agora desses tempos em que “o mundo era grande para Alexandre, mas um desvão de telhado era o infinito para as andorinhas”. E por causa do sabor de um beijo vou guardar para sempre a lembrança de que o tic-tac de um relógio pode ser um incómodo, mas há sempre alguém que se apressa para lhe dar corda assim que ele pára. “E que o derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há-de ter um relógio na algibeira para saber a hora exacta em que morre”.
E, para acabar, fica aqui um dos capítulos do livro do grande Joaquim Maria Machado de Assis, mais fácil de ler e que mais nos prende à leitura: “Matamos o tempo; o tempo nos enterra”. “Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto se todos andassem de carruagem”. “Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros”. “Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar”. JAE.