Do Homo Sapiens ao Homo Sabe-Niente
Quem não treina a inteligência não se pode admirar de ficar cada vez mais estúpido, da mesma forma que quem não cuida da sua condição física não se pode admirar de engordar. Felizmente a inteligência artificial está aí à porta. Quando a inteligência natural regride, só nos resta confiar na ciência.
Há cerca de 50 anos, Jô Soares tinha um programa humorístico intitulado “Planeta dos Homens” em que uma das peças terminava sempre com a frase: “ A ignorância desta juventude é um espanto! ”
50 anos depois os jovens fizeram-se velhos e a ignorância já deixou de espantar quem quer que seja. Quando ouço hoje pais e professores queixarem-se de que os jovens não lêem, gostaria de saber o que lêem os pais e professores que se queixam de falta de leitura da geração dos seus filhos e dos seus alunos.
Ainda há pouco tempo uma vereadora da cultura confidenciou-me que não tinha tempo para ler. Eu até compreendo que não tenha tempo para ler, o que já tenho dificuldade de compreender é como é que uma pessoa que não tem tempo para ler aceita ser vereador da cultura.
Fui vereador da cultura durante um mandato (1997-2001). E não era vereador nem a tempo inteiro, nem a meio-tempo. Na altura, era advogado e professor, e, para além de vereador da cultura, cargo que exercia nas horas livres e sem qualquer remuneração, era presidente do Eléctrico e director do jornal A Ponte. No entanto, tive sempre tempo para ler.
Nasci e cresci em casas cheias de livros. Desde os 15 anos que sigo o conselho de Hipócrates: “ Aquele que só sabe de medicina nem mesmo de medicina sabe.” Por isso, habituei-me a ler todos os dias um capítulo de três livros diferentes, começando sempre pelo que menos gostava: um de literatura, outro de filosofia política ou economia política e outro de psicologia ou treino desportivo.
Hoje os livros já não servem sequer para decoração. Apesar de ter publicado um livro recentemente, fi-lo com a perfeita consciência de que a era dos livros, como forma de conhecimento, chegou ao fim. Com efeito, decidi publicar as “Crónicas dos Bons Amigos” com o mesmo espírito do habitante de uma ilha deserta que decide lançar ao mar uma garrafa como uma mensagem escrita, na remota esperança de que os seus netos, quando chegarem à idade adulta, a leiam.
Hoje vivemos na era dos escritores. É mais fácil encontrar uma pessoa que escreveu um livro do que uma pessoa que leu um livro. Aliás, se todas as pessoas que escrevem livros tivessem o hábito de ler livros, a maioria não teria certamente o descaramento de publicar o que escrevem.
Como todos devíamos saber, a qualidade das democracias depende exclusivamente do grau de conhecimento do seu colégio eleitoral. Uma população esclarecida não só faz melhores escolhas como mais dificilmente é enganada e manipulada. Acontece que a maioria das nossas elites locais e regionais se limita a ler umas frases soltas nas redes sociais e a colocar uns “likes”. E quem não treina a inteligência não se pode admirar de ficar cada vez mais estúpido, da mesma forma que quem não cuida da sua condição física não se pode admirar de engordar. Felizmente a inteligência artificial está aí à porta. Quando a inteligência natural regride, só nos resta confiar na ciência.