É maravilhoso podermos ler as notícias de hoje nos jornais de há dez anos
Inesgotável Serafim das Neves
Inesgotável Serafim das Neves
Comecei a reler velhos livros e descobri que está lá tudo, ou quase tudo, o que ando a ler nos livros que são apresentados como grandes novidades literárias. Foi uma descoberta de grande importância económica porque tenho poupado umas massas em livros novos.
Entusiasmado, lancei-me aos jornais e está a acontecer-me o mesmo. Recuei dez anos, para não me afastar muito, mas estou tentado a recuar mais. É reconfortante perceber que ler uma edição desses tempos é quase o mesmo que ler uma de hoje.
Um dia destes estava a ler sobre uma greve dos professores aos exames de avaliação e uma greve de maquinistas dos caminhos-de-ferro e só depois de acabar é que percebi que as notícias tinham uns bons dez anos. Fiquei felicíssimo como imaginas. Até os sindicalistas eram os mesmos e diziam as mesmas inanidades. Fantástico! E já se escrevia da mesma forma que agora. Com a velha ortografia, com a nova ortografia... e até com nenhuma delas.
A invasão da Ucrânia é a excepção que confirma a regra. Mas, de um modo geral, as notícias são eternamente actuais e respeitam o rigor informativo e a factualidade. Ao lermos certos títulos e entradas com as fórmulas “terá feito”, “terá andado”, “terá fugido”, “terá roubado”, é como se estivéssemos em 2023. Fino recorte literário, dirá qualquer um. Shakespeare, no seu período áureo de jornalista, também abria grandes reportagens com frases como a historicamente conhecida “Terá feito ou não terá feito, eis a questão!”.
Engarrafamentos de trânsito na Ponte da Chamusca. Anúncios de solução para os antigos blocos de apartamentos da Escola de Cavalaria de Santarém. Subida da inflação e aumento de preços. Discussão sobre a localização do novo aeroporto. Falta de médicos de família ou Urgências cheias, tanto podem ser lidas num jornal de hoje, como num jornal de há cinco, dez, quinze ou vinte anos. Está lá tudo escarrapachado.
Os temas de agora são inesgotavelmente iguais aos de “tresanteontem” e não é por culpa dos jornalistas que são mensageiros, retransmissores ou amplificadores, conforme o estilo de cada um. E antes, como agora, a opção pela animação e pela declaração popularucha em detrimento da informação correcta mas chata, continua a ser a regra.
São os ministros e ministras que não são convidados para a Feira da Agricultura. Presidentes de câmara, seja na Chamusca, no Entroncamento ou em Constância a fazerem e a dizerem as mesmas enormidades. Maridos que matam mulheres; mulheres que matam maridos e excelentes vizinhos que um dia acordam bem dispostos e desatam aos tiros no café.
Experimenta pôr, lado a lado, notícias de hoje e de há uma década. Escolhas o lado que escolheres tens sempre a actualidade. Descargas poluentes nos rios; um Tejo mais de areia do que de água; um empresário que anuncia um parque “científrico-divertículo” na Barquinha, com camelos e tudo; jovens médicos que emigram sabe-se lá para onde e pleno emprego para jovens militantes políticos, com ou sem licenciatura, seja como assessores ou adjuntos, em gabinetes de membros do Governo, de membros de conselhos de administração de empresas públicas e de presidentes de câmara. Ai tradição, tradição... ai, ai, ai... ai, ai!!!
Um bacalhau bem aviado
Manuel Serra d’Aire